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Desapego material: não somos o que temos
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Era uma viagem curta e corriqueira, daquelas em que a maioria das pessoas só embarca com mala de mão e quando o avião mal alcança a altitude de cruzeiro, já começam os procedimentos de descida.

Como vivemos itinerantes e sem casa fixa há 8 anos, a mala de roupas que sempre nos acompanha pra cima e pra baixo – ou seria armário ambulante?! – havia sido despachada naquele voo. Diana e eu não deixaríamos o avião direto ao portão de desembarque como quase todos ali. Esperaríamos por ela na esteira de bagagens. O quê, de tão habitual, nunca foi um problema ou desconforto.

Aliás, muito tínhamos a celebrar por, durante todos aqueles anos de vida nômade, nunca ter tido problemas com extravio ou até perda definitiva de nossos pertences por companhias aéreas e aeroportos. Em, seguramente, perto de uma centena de voos. Até aquele dia!

Tudo tem sua primeira vez

Ali, acompanhando a cíclica e incessante movimentação da esteira 2 ou 3 – já não me lembro – aguardávamos nossa mala. Após sei lá quantos minutos, presencio algo que nunca havia me dado conta de ter percebido tão vividamente. A esteira – vazia – com as bagagens de um voo nosso parar. Sem ter trazido nossa mala.

Reduzidos em vinte e três quilos de uma hora pra outra, fizemos tudo o que se orienta fazer nesses casos: pegar o comprovante de despacho, falar com a equipe da companhia áerea in loco, protocolar a ocorrência devidamente, preencher alguns formulários, assinar uma coisa ou outra, etc e tal. 

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Após as burocracias, não tive como não deixar de notar a tranquilidade e maturidade com as quais estávamos lidando com a situação. Tudo o que tínhamos de posse material – tirando os equipamentos nas malas de mão e mochilas – havia desaparecido. E não havia sequer um pingo de preocupação em nossos semblantes.

Quando me dei conta disso, perguntei pra Diana: “Se essa mala nunca voltar a aparecer, quais das coisas ali dentro você lamentaria nunca mais poder ver?”. Ela pensou. Pensou. Franziu a testa. Olhou pra cima. Pra baixo. E após tentar buscar alguma resposta, se surpreendeu com o que encontrou. “Nada. Não sentiria falta de nada”, disse. Ela me perguntou a mesma coisa e eu disse o mesmo. Minha pergunta era retórica e só queria ter certeza de que estávamos mesmo vivenciando aquilo com uma assombrosa serenidade.

A gente gosta de relembrar aquele dia. Já dedicamos muitos momentos pra filosofar sobre nossa reação àquela inédita situação. Mas por que não estávamos lamentando a perda de todas nossas roupas e itens pessoais?

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Essa história ainda não havia acontecido quando escrevemos o livro Mínimo Essencial: Como a redução do excesso nos torna mais criativos, eficientes e empáticos* (Faria e Silva). E é justamente nele onde encontro uma resposta tangível para essa pergunta.

Uma passagem no segundo capítulo diz assim:

Quando a virtude (…) de um bem material se desconecta de sua utilidade prática, o bem material ganha outro significado. Vai-se a funcionalidade e surge a afetividade. Antes de ser uma ferramenta usada para realizar a ação desejada, o bem passa a ser uma propriedade sentimental. Substitui-se sua finalidade pelo prazer de sua conquista e de sua posse. Nossos bens passam a estar sentimentalmente conectados a nós. E este é o momento quando nosso estado de ser passa a estar vinculado ao que possuímos e quando passamos a afirmar quem somos a partir do que temos. Sou o que tenho. (…) Este é um processo brutalmente sutil: quando pessoas, para se reconhecerem e se autoidentificarem, precisam de coisas que as definam.

Por qual motivo lamentar a perda?

No livro a gente aprofunda mais essa reflexão, mas a questão aqui é que tudo o que estava naquela mala era visto, exclusivamente, por suas funções. O moletom, pra não passar frio. As resistance bands, pra se exercitar. A máquina de cortar cabelo, pra manter o visual em ordem. E por aí afora. Claro que tínhamos apreço por muitos dos itens, como a jaqueta jeans da Diana ou minha camisa florida, mas no fim das contas elas tinham suas utilidades práticas. Eu poderia ter outra camisa tão ou mais bonita como aquela. Diana poderia o mesmo com outra jaqueta. Ou poderíamos ter coisas completamente diferentes destas. E as novas passariam a proporcionar a mesma conveniência das perdidas. Vestir, nos deixar bonitos, nos fazer bem.

Apesar de cuidar carinhosamente de todos nossos pertences e eles nos serem muitíssimo úteis, não estávamos emocionalmente ligados a eles. Não havia dependência. Não pertencíamos a eles. Sem aqueles itens, continuávamos sendo quem éramos. O conteúdo de nossa mala não era a razão de sermos quem éramos.

Portanto, ao não poder reaver nossas coisas, a sensação não era de termos sido subtraídos em nossa personalidade ou individualidade. Continuávamos sendo as mesmas pessoas. Definitivamente, não somos o que temos. E então, por qual motivo lamentar e sofrer?

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E a mala?

Como aprendi naquele dia a viver sem, já ia me esquecendo dela.

Duas horas depois de deixar o aeroporto, a companhia aérea nos liga dizendo que nossa mala havia sido encontrada. Ela seria entregue naquela mesma noite. Não ter quase nada, durou pouco. Foi bom ter nossas coisas de volta. Mas nada se compara ao quão completos nos tornamos após sua ausência.


LEO LONGO é documentarista minimalista há 8 anos. Vive na estrada para filmar séries ao lado de Diana Boccara, com quem forma o duo Couple of Things. Artista e ativista do minimalismo, escreveu o livro “Mínimo Essencial”. Suas produções estão disponíveis em plataformas como Amazon Prime Video e GloboplayAqui na Vida Simples, o duo escreve sobre como o fazer Arte independente e a vida nômade e minimalista revolucionam sua percepção de mundo.


Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.


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