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Como manter a calma?
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Assumir os medos, partilhar o que se sente e sair da esfera egocêntrica são as principais armas para resgatar o equilíbrio e manter a serenidade

Neste histórico ano de 2020, tudo subitamente mudou. Temos as rotinas condicionadas e estamos aprendendo a lidar com novas regras de deslocação, cuidados de saúde e convívio social. Desde março que o #fique-em-casa e o #tudo-vai-ficar-bem remete para a imobilidade e a espera. Mas mesmo assim, decidi fazer o que considero parte da minha essência: viajar. A filosofia vitalista ensina que no que toca ao fundamental para a nossa vida, não devemos recuar diante de nada, mesmo que tudo à volta tenha um plano maquiavélico para nos desarticular. Vislumbrando  a quantidade de tarefas com o planejamento e a burocracia da viagem — autorização prévia via QR Code do destino, teste de Covid, — soube que eu não teria nem tempo, nem energia para fazer frente à oposição dos outros. Então decidi eliminar o embate com aqueles que poderiam tentar me dissuadir: não contei nada a ninguém.

Novos tempos

Simplesmente parti. Como nunca desfrutei da crença de que o mundo é um lugar seguro, foi-me relativamente fácil. O difícil mesmo foi manter a calma diante da histeria de alguns. No avião, ouvi uma senhora reclamar para a comissária que a pessoa da frente não tinha o nariz completamente coberto pela máscara, outro queria mudar de lugar. Na fileira à minha extrema-esquerda, uma senhora portava luvas de borracha, máscara e viseira e passou parte da viagem a esfregar álcool em tudo à sua volta, na janela do avião e em seus próprios pertences como a bolsa e o celular. E por duas vezes vi-a chamar a comissária e denunciar alguém que havia deslizado a máscara para o queixo.

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Já no hotel, no café da manhã, alguém ao meu lado deu um grande salto e gritou “2 meters!”. Depois de refeita do susto, chequei a distância que certamente passava dos dois metros e contemplei a figura. Um homem de tez vermelha, entre 40 e 50 anos, trajava uma camiseta e um shorts de moletom num tamanho abaixo do seu; nos pés, os chinelos de quarto com o logotipo do hotel. Talvez pelo grito inesperado, mais o contraste dos seus trajes informais com a austeridade do hotel, achei a cena cômica e fiz um esforço imenso para conter uma gargalhada. Mas ele percebeu e passou a resmungar que “a situação era muito séria”.

Passado mais alguns minutos, eu já sentada, ouvi o senhor dar outro grito. Quando sai, ele estava no saguão conversando com o gerente do hotel e parecia muito mais calmo porque falava a menos de um metro do seu interlocutor. Mas ainda pude ouvi o seu desabafo: ele “não se sentia seguro no hotel”.

Dor alheia

Depois que assimilei o drama, passei a imaginar o sofrimento dessas pessoas. Lembrei dos médicos que afirmam terem muitos pacientes com transtornos de ansiedade. Não tem o vírus, mas estão adoecidas pelo medo do vírus. São pessoas que estão “se adoecendo”. E se até ali exultava a filosofia vitalista de Nietzsche e sentia-me fortalecida pela ousadia  — minha e a de outros, afinal tivemos a coragem de “sair na chuva” — passei a pensar que talvez agora para desfrutar da ousadia, o estoicismo era bem-vindo. Quando um cenário, maior do que nós, é apavorante, o que fazer para manter a calma? Os estoicos ensinam que devemos primeiro permanecer no registro da ousadia e confessar o que sentimos.

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Na incerteza e no perigo, estar ansioso ou “morrendo de medo” é perfeitamente normal e assumir essa condição traz calma, ponto básico para um melhor enfrentamento. Administrar os sentimentos é muito mais produtivo do que negá-los. Eu senti um pouco de pânico nas 24 horas de espera do resultado do teste do Covid? Claro que senti. E estava cheia de razão. Nos últimos três dias antes da viagem tive dor de cabeça. E vinha a dúvida: estresse dos preparativos ou eu havia contraído o vírus? Estava preocupada, mas encarei a preocupação como normal. E aqui alerto: esse bordão repetido a exaustão de que “tudo vai ficar bem” pode ser muito mais penoso do que falar sobre o que nos apavora.

O que traz conexão

Se na vida normal o excesso de positivismo pode ser frustrante, nos cenários “anormais”, é um desastre. Fernando Pessoa já denunciava esse desconforto com o “Poema em Linha Reta”: “nunca conheci quem  tivesse levado porrada/ todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”). Assumir o que sentimos nos alivia e liberta. E esse bem é estendido ao outro que ao ouvir a nossa confissão se sente acompanhado. Saber que o outro compreende/compartilha o nosso sofrimento traz conexão, afinidade, empatia.

Descanse o ego

Ah Mas é tão bom posarmos de destemidos, impressionarmos com a nossa força! Aproveite esse cenário para se libertar do ego. O que vivemos hoje dá-nos essa liberdade. O principal efeito tóxico de redes sociais, como o Facebook, é que todos são “convidados” a posarem de gurus, a mostrar o melhor ângulo. Liberte-se! Aproveite a deixa e saia desse registro, descanse. E se você faz tanta questão da audiência saiba que só a honestidade traz os amigos verdadeiros. Quando o estoico Marco Aurélio nos previne sobre o mal assim que abrimos os olhos de manhã, não é para cravar o punhal do pessimismo nas suas costas. O que ele diz é que o mal está ao virar da esquina, acontece com mais frequência do que gostaríamos de admitir, mas que somos capazes de lidar com ele.

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Devemos assumir, explorar e, finalmente, dominar as nossas preocupações. Camuflá-las ou escondê-las só vai fazer com que elas se fortaleçam e perturbem ainda mais os nossos dias. O senhor que berrou pelos exatos dois metros de distância no hotel em Atenas, estava visivelmente muito mais calmo quando admitia que “não se sentia a salvo no hotel”.

Serenidade

Para manter a serenidade, o estoico Sêneca aconselhava a imaginar o que poderia acontecer e não apenas o que você esperaria que acontecesse. Não é o mesmo que ser pessimista. E se preparar, é ter plano “B”, “C”.  Para os estoicos a força interior está sempre no exercício do enfrentamento. O que é mais sensato: ficar em casa tremendo, oscilando entre adivinhar o que está acontecendo lá fora, tentar enganar a mente de que está tudo bem; ou olhar pela fresta da janela, pegar a lanterna e verificar? Como podemos nos preparar se não soubermos o que realmente se passa lá fora? Como podemos pensar em estratégias de resistência se não sabemos contra o que ou contra quem devemos lutar?

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O estoicismo nos previne de que tudo pode acontecer, mas as chances de sobrevivência são altas porque estamos muito mais preparados para lidar com as adversidades do que com a felicidade. Somos naturalmente apetrechados para lidar com a dor e as intempéries, com os cenários difíceis e com os desastres.

Relaxe

Mas estou em plena crise, vejo a sala do pânico, não vejo saídas… Aceite a sua impotência diante do cenário e não nade contra a corrente. Pare de olhar apenas para você mesmo, há muitos outros confusos e assustados. Estenda a mão, escute os outros, partilhe o que você sente. Não é apenas nos momentos felizes e diante de uma taça de vinho que se constroem laços.

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As adversidades também tem efeito agregador e são uma boa oportunidade para construir relações. Liberte-se, dê descanso à sua mente da tensão de esperar sempre o melhor. Abra espaço e explore também os desfechos sombrios. Mas não se entregue ao pessimismo. Busque o equilíbrio trazendo o humor, a experiência estética e os pequenos prazeres para os dias difíceis. Busque a serenidade e não deixe que os seus pensamentos adoeçam a sua mente. Apesar do temor, do cenário hostil, esse também pode ser um tempo bonito. De recolhimento interior, de cura de vícios e de excessos, de leituras edificantes, de realizações silenciosas.

Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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