“Para ser grande, sê inteiro”: a busca pela essência
Tenho comigo que grande parte das doenças emocionais de nossos tempos - ansiedade, depressão, burnout - estão diretamente ligadas a essa fuga de quem realmente somos em essência. Que neste ano que se inicia, possamos estar mais presentes e mais inteiros em tudo que fazemos.
O ano está começando e uma das coisas que mais almejo neste 2023 é trocar os post-its de metas espalmados no quadro do escritório pela inteireza de Getúlio. Quem sabe, assim, paro de duelar com quem não sou, enterrando de vez a parte de mim que ainda me sabota.
Getúlio é um pipoqueiro que durante anos fisgou muitos famintos à porta do metrô Sumaré e não apenas pelo cheiro proveniente de suas caçarolas saltitantes, mas também por uma certa aura leve que normalmente envolve aqueles que conseguem atravessar a vida sem resistir muito a ela.
Não foram poucas as vezes em que, desanimado depois de um dia estressante numa época de minha vida em cujo trabalho não via mais sentido, me apaziguei apenas observando seu semblante sempre presente em cada conversa com clientes naquele seu pequeno recorte de mundo, enquanto aguardava pelo meu saquinho de pipoca que me distrairia num andar filosófico até chegar em casa.
Diria que Getúlio é alguém que chega muito próximo do que Fernando Pessoa eternizou num de seus mais belos poemas sobre autoaceitação.
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Faz muito tempo que não vejo Getúlio, desconfio que tenha sido obrigado a deixar o entorno do metrô por conta de um reordenamento de ambulantes na área, mas recorro a ele nesta minha coluna de hoje em Vida Simples para falar sobre inteireza, sobre sermos aquilo que verdadeiramente temos em essência e não aquilo que achamos que devemos ser por uma série de imposições, ainda mais num mundo de tantos espelhos refletido nas redes sociais.
Retirar
Neste ano, completo meio século de vida. Estou naquela fase em que o Sol já passou pelo meio do céu, ou seja, já vejo mais perto o poente do que o nascente, o que de alguma maneira tem alimentado em mim uma necessidade maior de não perder tempo com coisas que no fundo só nos fragmentam.
Sei, porém, que não é uma tarefa simples. Eu mesmo me pego com frequência colando novos post it na parede com frases do tipo: “tenho que fazer isso…”, “preciso daquilo….” e por aí vai… É da natureza humana nos empurrar sempre um passo à frente.
O problema é que corremos em busca de uma certa idealização de vida inatingível achando sempre que ela pode ser alcançada à medida que fazemos mais e mais coisas.
Ainda bem que Antoine de Saint-Exupéry, autor do clássico da literatura “O pequeno príncipe” passou por aqui para nos alertar que a perfeição não é alcançada quando não há mais nada a ser incluído. A perfeição é alcançada quando não há mais nada a ser retirado.
Desconfio que Getúlio já havia se dado conta disso.
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Claro que exagero quando idealizo uma certa “inteireza” de Getúlio. Não tenho dúvidas de que aquele pequeno ambulante do Metrô Sumaré também vive suas batalhas internas como qualquer mortal, mas quando o trago aqui para essa conversa é no sentido de ajudar a identificar em nós um sentido de presença maior em cada ato da vida. Getúlio entregava um pouco do que era em saquinhos de pipoca temperados com boa escuta e olhar presente. É dessa inteireza que estamos precisando mais no mundo.
Aliás, como é bom conversar com alguém que notamos estar atento ao que falamos. É como se um campo invisível nos envolvesse criando uma conexão segura em que ouvir e falar se encontram na mesma frequência. Há algo mágico nesse instante capaz muitas vezes de curar uma dor, uma angústia à espera de apenas um ouvido atento e receptivo. Impossível alcançar a inteireza sem a presença.
Nascemos originais e morremos plágio
Buscar a inteireza exige um esforço permanente. No documentário “Pausa – o Intervalo do Mundo” que dirigi em 2021 para falar sobre os aprendizados da pandemia do Covid-19, uma das entrevistas trouxe uma frase que sintetiza bem o quando nos afastamos de quem realmente somos: “O ser humano nasce original e morre plágio“, disse Leila Ferreira, autora do delicioso livro “A arte de ser leve“.
Interessante observar e o que muitas vezes não nos damos conta, é que esse afastamento de uma verdade intrínseca, nos adoece, custa caro e exige um esforço de energia além da conta.
Tenho comigo que grande parte das doenças emocionais de nossos tempos – ansiedade, depressão, burnout – estão diretamente ligadas a essa fuga de quem realmente somos em essência.
Que neste ano que se inicia, possamos estar mais presentes e mais inteiros em tudo que fazemos.
Por onde você tem andado, Getúlio?
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