Família: aprenda a construir relações saudáveis
Entender as mudanças que estão ocorrendo dentro dos nossos lares é imprescindível para sabermos como as relações familiares – e os afetos – estão se transformando rapidamente
Dona Anita está completando 89 anos de vida. Para celebrar a data, Zilda – a filha com quem mora a aniversariante – organiza uma festa e chama todos a família: irmãos, cunhadas, sobrinhos, netos, bisnetos. À noitinha, eles vão chegando. Todos ali comparecem à festa por obrigação. “Vim para não deixar de vir”, confessa uma das noras de dona Anita. O marido dela não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos. A esposa foi representá-lo, de forma que nem todos os laços fossem cortados.
A velha matriarca, do alto de seus 89 anos, sentada à cabeceira da mesa, observa tudo, estarrecida: as rixas entre as noras, as conversas vazias e forçadas, a frieza do tratamento entre os irmãos e, sobretudo, as aparências para “manter os laços”, que só evidenciam a degradação da instituição familiar.
A cena é de um dos mais famosos contos de Clarice Lispector, “Feliz Aniversário”. Essa visão negativa da dissolução da família não poderia ser mais atual, mesmo quase cinco décadas depois.
As relações familiares estão enfrentando um período turbulento. E justamente num momento em que elas se tornaram mais importantes que nunca. A boa notícia disso tudo é que a família não vai acabar, como defendem alguns especialistas; mas, para sobreviver, ela precisa mudar. É sobre essas mudanças que vamos falar a seguir.
Equilíbrio delicado
As pessoas estão trabalhando mais e ficando menos tempo com seus familiares; os índices de divórcio só aumentam; são raras as famílias que têm relações próximas com avós, tios e primos; os parentes mais velhos são colocados de lado pela falta de tempo e pela incapacidade de lidar com eles.
A crise da família como instituição remonta justamente à década de 60, com a onda da libertação sexual e do movimento hippie. O autoritarismo que imperava nas relações dentro de casa passou a dar lugar à liberdade na forma de criar os filhos. Temendo ser vistos como castradores, repressivos e autoritários, muitos pais deixaram de exercer a autoridade que lhes cabia e tornaram-se permissivos. Mas essa falta de autoridade passou a ser confundida com falta de limites. Agora é preciso correr para corrigir essa distorção.
A terapeuta familiar Maria Tereza Maldonado, que estuda as relações dentro dos lares, acredita que essa revolta contra o autoritarismo causou resultados desastrosos nas famílias – efeitos que só começaram a ser percebidos recentemente.
“Sem autoridade, é impossível transmitir os valores básicos do convívio, como respeito, consideração, cooperação, solidariedade e generosidade”, explica. E como é possível manter uma família sem esses valores, se são justamente eles que definem as relações familiares?
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A importância do diálogo
Diante dessa questão, não é difícil entender por que precisamos realmente encontrar novas saídas para as famílias de hoje.Um atalho para esse caminho está no equilíbrio entre o autoritarismo e a permissividade, segundo Maria Tereza. “É preciso manter o pêndulo no meio, sintonizar liberdade e limites e não confundir autoridade com autoritarismo.” Esse é o paradigma da família moderna, que passou a colocar na balança os valores de hierarquia das famílias do passado de um lado com a liberdade de expressão dos tempos presentes de outro. “Como diz aquele ditado inglês, ‘não se pode jogar o bebê fora junto com a água do banho’”, diz a terapeuta.
Foi assim que Eliana Abreu resolveu criar seus filhos, hoje já adultos. Vivendo em Pindamonhangaba, interior de São Paulo, ela era a única que auxiliava nas tarefas de casa: aos quatro irmãos homens não cabiam os serviços domésticos e a única irmã era pequena demais para ajudar.
Liberdade e cumplicidade
Educada com “rédeas curtas”, Eliana só podia sair de casa para ir à escola, ajudar a mãe ou fazer as lições. Fazer faculdade estava fora de cogitação e conseguir trabalhar foi uma luta. “Meu pai achava que mulher não precisava de nada disso”, diz.
Assim que conheceu o atual marido, namoraram por um tempo e casaram-se cedo. “Não aguentava mais a prisão e a fiscalização em cima de mim, queria fazer muitas coisas que não podia fazer em casa.” Durante o casamento, começou a faculdade de Pedagogia, mas logo parou para cuidar dos filhos, hoje com 27 e 29 anos.
“Tentei educá-los de maneira diferente. Em casa, não havia diálogo. Meu pai não orientava, apenas proibia. Por isso, tentei criar uma relação de liberdade e cumplicidade com o Thiago e a Carol”, diz. “Mas sempre mantive a disciplina e o respeito pela família, que são coisas que aprendi com meus pais.”
Relações de afeto
Mas não foram apenas os valores das famílias que mudaram. A constituição delas também se transformou muito. Hoje, já não existem regras para se formar um lar e o conceito de família desestruturada caiu por terra. Uma família organizada já não precisa mais ser composta por pais casados e seus filhos, como exigia o estereótipo padrão. Há lares harmônicos e desarmônicos em todas as maneiras de ser de uma família – pais solteiros, separados ou em novas uniões, irmãos que moram juntos, filhos criados por avós, uniões homossexuais etc.
Essa nova visão permitiu o avanço mais significativo do campo familiar nos últimos tempos: as relações pautadas pelo afeto e não somente pelos laços de sangue, que expandiram a forma de se estabelecerem relações e inverteram o senso comum de que família é aquela com a qual temos parentesco. Nada disso. “Família é aquela em que o afeto, o respeito e a consideração estão presentes e são levados a sério”, afirma Maria Tereza.
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Saiba escutar
Portanto, a associação de irmãos não consangüíneos, de colegas de república, de amigos que resolvem rachar um apartamento, de casais que dividem o teto sem, de fato, terem assinado o termo civil podem, sim, ser considera-das famílias. Tudo é válido hoje, desde que se esteja em busca do bem-estar comum.
Para isso, cada indivíduo que constitui aquela família é uma peça para que a engrenagem toda funcione. Isso significa dizer que a família já deixou de ser uma totalidade homogênea e passou a compor um universo de personalidades, em que cada um colabora com a sua individualidade.
Democracia é a palavra-chave: afinal, é indispensável que cada um possa colocar em prática suas crenças e interesses pessoais. É aí que entra a sensibilidade para escutar as opiniões, sentimentos e necessidades de cada membro – o que nem sempre é fácil, mas imprescindível para se manterem relações saudáveis e autênticas.
Sem segredo
A verdade é que sem nossa família não estaríamos aqui hoje – literalmente. Ela influencia todos os aspectos de nossa vida, desde que nos constituímos indivíduos, isso ainda na infância, e molda nossa personalidade. Por maiores problemas que tenhamos com a nossa, ela nunca deixa de ser importante. “Nós escapamos, emigramos, trocamos o sul pelo norte e o leste pelo oeste devido à necessidade de nos libertarmos, mas depois viajamos periodicamente de volta para casa para renovar o contato com a família”, escreve o psicanalista inglês D.W. Winnicott no livro A Família e o Desenvolvimento Individual.
Cansado de ouvir apenas os aspectos negativos dos relacionamentos familiares, o psicólogo e cientista social David Niven (um homônimo do ator britânico) resolveu pesquisar algumas dicas preciosas de como conviver bem em nossos lares e as compilou no livro 100 Segredos das Famílias Felizes. Antes de tudo, ele lembra que, quando olhadas de longe, as tramas familiares parecem complexas. Mas, quando chegamos perto, percebemos que elas não passam de uma série de relacionamentos iguais a todos que estabelecemos durante a vida.
Tolerância
Para viver bem em família, diz ele, é preciso se aproximar das relações. Aí, é necessário que cada um aceite desempenhar o seu papel. “A vida familiar é aquilo que fazemos dela”, afirma. “Ao evitar compartilhar seus sentimentos com um tio com o qual não tem muita intimidade, você impede a aproximação entre vocês. Conversar com ele pode aumentar as relações e abrir novas oportunidades de diálogos”.
Claro que isso não implica ter afinidade com todos os parentes. Manter um bom relacionamento não significa se dar bem com todos. Sempre tem uma tia ou um primo que não “descem”. Mas aí respeito e consideração são essenciais. Porque conviver é fazer concessões para o bem-viver. “Apesar de a família ser um conjunto, seu sucesso em lidar com ela está diretamente ligado à sua capacidade de se relacionar com cada um de seus integrantes separadamente”, diz Niven.
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Reinvenção diária
Mas talvez o principal ensinamento seja o mais simples – e por isso o mais valioso: aquela família perfeita do comercial de margarina não existe. Isso quer dizer que você não deve ficar comparando sua existência com aquilo que parece ser a vida ideal. Não estrague sua relação familiar estabelecendo padrões impossíveis para ela. Toda família tem suas limitações, suas dificuldades.
Nesse mundo em constante transformação, o relacionamento familiar precisa ser reinventado o tempo todo. Porque as mudanças acontecem, não tem jeito: o filho sai de casa para estudar fora, a avó doente se junta à família para ter os cuidados necessários, a filha se casa e vai morar em outro país, os pais acabam se separando por falta de entendimento. O equilíbrio familiar precisa ser constantemente restabelecido.
A família Marthe sabe bem disso. Ronaldo e Mara se casaram e tiveram duas filhas. Alice, hoje com 25 anos, nasceu com paralisia cerebral. Para ajudar a cuidar da menina, a mãe de Mara mudou-se para a residência. Ronaldo fez uma série de adaptações na casa e contratou uma ajudante para que a filha pudesse se desenvolver da melhor forma possível. Um ano depois, eles tiveram Maria Fernanda, de 24 anos e saúde perfeita. Eles viviam numa estrutura familiar considerada ótima. Após 12 anos de casamento, porém, Mara conheceu outra pessoa e pediu o divórcio. E logo se casou novamente.
Mudanças
Com a saída dela de casa, as filhas ficaram com Ronaldo e sua sogra, Ana, que continuou a morar com o genro para dar assistência às netas. Dois anos depois, com a separação já superada, Ronaldo comprou a casa na frente da sua e convidou a ex-mulher e o marido a morarem ali. Ele queria que as filhas tivessem muito mais contato com a mãe. Então Mara se mudou para a casa da frente e teve outro filho, Luan, do segundo casamento. “No começo não foi fácil. Todos nós sofremos muito com a separação”, diz Ana. “Mas o tempo colocou tudo no lugar e voltamos, enfim, a ser uma família.”
Hoje, a convivência entre Ronaldo e Mara é de cumplicidade. Ele trata Luan assim como trata as próprias filhas – inclusive com os mesmos mimos. Apesar de morarem em casas diferentes, separadas apenas por alguns metros de asfalto, a relação familiar foi reconstituída. “Foi um aprendizado que nos fez crescer muito e estreitou o afeto entre todos nós”, diz Ana.
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Segundas chances
Por maiores que sejam os conflitos, sempre existem segundas chances nas relações familiares. Afinal, os bons laços (como os de família) são praticamente impossíveis de se desfazer – exatamente porque dão um trabalhão para serem feitos e atados. Procurar respeitar e entender a pessoa que o desapontou não significa concordar cegamente com o que ela fez, mas contribui para o bom andamento da relação e garante a preservação de algo tão valioso quanto a família.
“Consertar um relacionamento familiar não é fácil nem rápido. Mas, se esse for realmente seu desejo, você será capaz de refazer os laços”, afirma Niven. Só é preciso ter paciência e esperança. E sempre se lembrar, talvez, da imortal sentença de abertura do romance Ana Karenina, de Leon Tolstoi: “Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.”
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