Vida Simples entrevista Carla Madeira, autora de “Tudo é Rio”
Uma obra tem a capacidade de nos organizar ou de nos sacudir. É isso o que acredita a escritora mineira Carla Madeira, autora do sucesso "Tudo é Rio".
- De onde vem sua história com a palavra?
- E como a palavra se transformou em ofício?
- E a partir daí como você seguiu?
- Em que momento o livro nasceu na sua vida?
- Esse seu simples parece a busca pelo genuíno. E que de simples não tem nada...
- Como o personagem vai surgindo?
- Quando escreve, os livros vão morando em você?
- Uma obra nos impacta de diferentes formas?
- O livro é uma porta pra gente se compreender?
Meu encontro com a escritora mineira Carla Madeira aconteceu, primeiro, pelos livros. Suas obras, “Tudo é Rio” e “A Natureza da Mordida”, têm a capacidade de fazer morada dentro da gente. Reverberar. “Não consigo ser leve. Tenho essa necessidade de ser profunda”, comentou ao longo da nossa conversa.
Filha de pai matemático, Ulisses, com uma mãe que não tinha completado o fundamental, Irlanda, a escritora é uma combinação bem dosada dessa raiz cheia de aparente ambiguidades.
“Papai era uma pessoa erudita, sabia cinco línguas, entre elas latim. Era um cara que sabia história, música, matemática. Ele era 22 anos mais velho que minha mãe, que mal tinha completado o ensino fundamental. Mas ela é uma pessoa extremamente inteligente. Seis filhos. Quando éramos crianças, nos passeios, ela ia vendo as nuvens no céu e fazendo rimas, contando histórias. Minha mãe é uma contadora de histórias, borda, pinta, tricota. Uma artista muito criativa. Essa riqueza de inteligências e sensibilidades foi algo muito bom para a minha educação e dos meus irmãos. Eu tive muita sorte de ser filha dos meus pais”, conta Carla que carrega o sobrenome da mãe, Madeira.
Essa “riqueza de inteligências e sensibilidades”, como diz Carla, está presente em suas obras, que nos leva, pela narrativa, para um estado de inquietação. Nessa conversa, com aroma de café recém coado e pão de queijo fresquinho, ela compartilha seu processo de escrita e a busca pela palavra que nos acomoda.
Essa entrevista foi publicada na edição impressa de Vida Simples nº 222. Trazemos para vocês, agora, a versão integral da conversa com Carla Madeira.
De onde vem sua história com a palavra?
Vem da música, mais do que ser leitora, mais do que pela literatura. Aprendi a tocar violão muito nova, com 9, 10 anos. Ganhei um violão, sabia pouquíssimas composições e já fazia letras e tinha uma relação com a música popular muito forte. Eu comprava os vinis. Na época era vinil, né? Ouvia, lia as letras. Ficava enlouquecida porque a letra me encantava muito. Depois é que vieram os livros. O primeiro por quem me apaixonei foi (o escritor) Monteiro Lobato. Ele entrava nas histórias. Fui descobrindo essa outra possibilidade da palavra pela contação de história.
E como a palavra se transformou em ofício?
Então, pra entender isso, precisa antes entender a história da minha família. Papai era matemático. E eu e meus cinco irmãos gostávamos muito de matemática. Cheguei a fazer dois anos e meio de matemática pura na Universidade Federal de Minas Gerais. Só que a linguagem da matemática me levou a um completo afastamento das minhas outras linguagens, da composição, da pintura – por que também gostava de pintar – e da escrita. Eu já escrevia algumas coisas… Eu passava o dia inteiro naquela realidade paralela, que me fisgava muito, mas que me afastou de mim mesma e dos outros. Porque aquela realidade dos números não era algo conversável. Esse sofrimento interno me entristeceu. Então, um dia, cheguei em casa e disse pro meu pai que não ia mais para a Universidade. E que iria fazer comunicação. Eu precisava me reencontrar.
E a partir daí como você seguiu?
Me licenciei em jornalismo, relações públicas e publicidade. As três coisas. E ao sair da universidade, mesmo sem ter experiência, abri uma agência, que se tornou importante e reconhecida em Minas.
Em que momento o livro nasceu na sua vida?
Tem dois momentos muito distintos. O primeiro foi começar a fazer um exercício de linguagem. Comecei a escrever a história de uma personagem chamada Francisca. Foram páginas e páginas. Só que começou a me dar uma exaustão dela. E decidi largar tudo. E comecei de novo, numa poética cansativa. Eu dava um peso enorme para a palavra, perseguia aquilo – e depois eu limpei tudo isso no livro. Até que cheguei numa cena muito forte da obra (Tudo é Rio), de Venâncio (personagem), e aquilo me paralisou. E fiquei 14 anos longe dele. Mas, na verdade, eu não parei.
Aquela cena vinha e vinha. Às vezes eu anotava uma frase ou outra. Quando resolvi voltar, decidi escrever um capítulo de uma palavra só, que é “dor”. Ali foi o meu retorno. E tomei também a decisão de começar o livro daquele lugar. A partir dali, o refiz em oito meses. Fui achando a voz daquele narrador, que tem um sotaque, uma métrica, uma música e uma linguagem sem sofisticação. Então, outra decisão foi que não deveria ter nenhuma palavra que não fosse absolutamente simples, fácil.
Eu queria ser capaz de escrever ideias complexas, sentimentos profundos com palavras muito simples. Isso foi outra investigação de linguagem muito trabalhosa.
Meu processo de escrita era abrir o computador todos os dias, nem que fosse para trocar uma palavra. Lembro que teve um dia que passei horas e horas procurando uma palavra. Foi uma escrita muito lapidada para ser simples, mas tentando ter profundidade. Esse foi o processo.
Esse seu simples parece a busca pelo genuíno. E que de simples não tem nada…
Não tem. Já tive retorno de pessoas da literatura, da psicologia, da psicanálise, da antropologia, gente com mestrado e doutorado. Eu fui também com esse livro em presídios, num projeto do governo de redução de pena por meio da literatura. Lá, encontrei pessoas com pouca formação ou sem escolaridade. E, de letrados a não letrados, independente da esfera intelectual, todos se identificam com o livro. Por ele ter uma linguagem simples, não tem uma barreira de leitura forte. As pessoas compreendem o que estão lendo, ao mesmo tempo que tem questões muito complexas.
Como o personagem vai surgindo?
Os processos de criação dos personagens são muito diferentes. Em Tudo é Rio foi de um jeito, no Natureza da Mordida foi de outro. Tudo é Rio escrevi do jeito que você lê. Toda a arquitetura foi orgânica. Foi um jorro. Acho que ele ficou 14 anos preso em mim e quando veio, veio. Era como se eu estive num caminho escuro, mas haviam luzes que iluminavam meu caminho.
Eu não queria, por exemplo, personagens bons e outros, ruins. Todos são capazes de algo bom e de algo muito duro também.
É um desejo de que a gente compreenda a nossa existência humana, e de ter todas essas coisas na nossa vida: a beleza, a dor, o devir que a gente não sabe como será, a morte. Um personagem vai nascendo dessas decisões. Estou agora imersa no meu terceiro livro.
Quando escreve, os livros vão morando em você?
Vão, demais. No livro “A Natureza da Mordida” uma das personagens é uma psicanalista (Biá), que está num processo de demência por conta da idade. Para compô-la parti da pergunta: o que uma psicanalista não pode se esquecer para seguir sendo quem ela é? No enredo, essa psicanalista se encontra com uma jornalista ao acaso, em uma banca de revistas, local que ela frequentava bastante. E elas começam uma amizade ali. Mas o leitor, no início do livro, ainda não tem as circunstâncias da vida de cada uma.
O leitor só tem acesso as consequências, que é o que elas sentem. E ele experimenta, na carne, o que é você ter pedaços de histórias. E, a certa altura, o leitor tem acesso a história inteira. Vou te dar um exemplo. No meio do processo desse livro, fui para a Europa. E, por conta disso, ficaria um mês sem escrevê-lo, seria uma interrupção no meu processo.
Quando estava no aeroporto, comecei a ler a notícia de uma menina que foi sequestrada pelo estado islâmico e, por seis meses, foi estuprada todos os dias. Quando li isso, não era mais eu, mas a Biá. E passei dias da minha viagem com a voz dela na minha cabeça. E depois que encontrei a voz dela, até quando tomava banho, ouvia uma frase dela. Nessa viagem pela Europa, ela conversou comigo o tempo todo.
Uma obra nos impacta de diferentes formas?
Ano passado, fiz algumas palestras cujo tema era “Diálogos entre a escuta e a escrita” e uma coisa que aprofundei muito é que o leitor reescreve o livro, né? Ele escuta o livro com todas as coisas que estão escritas nele ao longo da vida. Em Tudo é Rio há cenas de sexo muito fortes. Lembro até que meu ex-marido me questionou se eu iria mesmo publicar o livro com aquelas cenas. E publiquei.
Então, logo após lança-lo, quando fui ao primeiro encontro com leitores, num clube de leitura, não sabia como seria a reação das pessoas. Tinham umas 25 mulheres e dois homens. E cada um falava um pouco sobre o que mais lhe impactou e fazia uma pergunta pra mim. Nenhuma pessoa falou sobre a questão do sexo. Falavam do perdão, de fé, mas nada de sexo. No final, entendi, que o que ressoa nas pessoas é a pergunta central da obra, que, neste livro, é se podemos perdoar o imperdoável.
O livro é uma porta pra gente se compreender?
Sim. Eu aprendo tanto… Escrever, ler, é sempre algo que te afeta, que ensina. É um aprender sobre a vida.
Através da literatura você organiza um tanto de coisas em você ou sacode a árvore para cair o que não está bom.
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