COMPARTILHE
Valter Hugo Mãe e a memória  que permanece
Zé Otavio
Siga-nos no Seguir no Google News

Valter Hugo Mãe tem fala generosa e suave, envolvida em um sotaque português que seduz os ouvidos. Traz em suas palavras precisas a poesia e a filosofia sobre a vida, além do bom humor ao falar sobre si mesmo. Desde garoto quis ser poeta, mas foi surpreendido pelo dom para a prosa quando escreveu seu primeiro romance. “A gente tem que aprender a ser o que é”, diz o escritor, em tom sereno de quem compreendeu que suas histórias são como poemas, só que mais longos.

Para acessar este conteúdo, crie uma conta gratuita na Comunidade Vida Simples.

Você tem uma série de benefícios ao se cadastrar na Comunidade Vida Simples. Além de acessar conteúdos exclusivos na íntegra, também é possível salvar textos para ler mais tarde.

Como criar uma conta?

Clique no botão abaixo “Criar nova conta gratuita”. Caso já tenha um cadastro, basta clicar em “Entrar na minha conta” para continuar lendo.

Com seu segundo romance, o remorso de baltazar serapião, ganhou em 2007 o Prêmio José Saramago. Em 2012, a máquina de fazer espanhóis deu ao escritor português nascido em Angola o Prêmio Portugal Telecom. A morte, tema presente em sua literatura, já era onipresente desde que Valter nasceu, por causa da perda do irmão mais velho anos antes.

Daí, ele acreditou por quase toda a vida na perspectiva de que sua própria morte era próxima. Mas o escritor de 44 anos tratou de enganar o tempo ao percorrer todas as idades nos enredos dos livros que compreendem a sua “tetralogia das minúsculas” (o nosso reino, o remorso de baltazar serapião, o apocalipse dos trabalhadores e a máquina de fazer espanhóis), obras em que ele deixou de lado o uso das maiúsculas para criar igualdade entre as palavras.

Valter Hugo Mãe conversou com Vida Simples em sua  vinda ao Brasil a convite do Fronteiras do Pensamento e falou sobre o valor da memória como patrimônio que permanece após a perda daqueles que amamos. Ainda que se preocupe em nunca repetir a mesma receita, os romances de Valter trazem uma potência afetiva e uma prosa poética que encanta e emociona.

Você diz que aprendeu com a poesia, e não com a prosa. E aí se vê escrevendo romance com um pé na poesia. Como é isso?

Eu digo que fui encontrado pela prosa. Essa coisa da ficção é algo que está em mim sem que eu tivesse propriamente procurado. A vida inteira eu sonhei em ser poeta, para mim só existia essa possibilidade. E, às vezes, aquilo que mais nos possa ferir é aquilo que está na nossa cara e não queremos aceitar.

Então essa relação com a prosa foi uma conquista muito complexa. Agora já estou apaziguado, entendo que a maneira como escrevo os romances é de uma forma muito poética. Então realizo aquele sonho de menino em um poema mais longo no romance.

Há pessoas que não conhecem a minha poesia, porque ela circulou menos e às vezes eu mesmo a escondo, e então elas me dizem: “Nossa, você deveria escrever poesia, você escreve poemas tão lindos!”, e eu às vezes digo que até já escrevi, só não acho que eles são tão lindos assim [risos]. Eles são mais bonitos dentro da prosa mesmo. A gente precisa aceitar a ser o que a gente é.

Quais questões você quer tratar, o que você ainda persegue nos romances?

Eu queria muito entender a morte e curá-la, achar a forma de ter uma vacina contra. E de alguma forma eu creio que tenho sempre uma relação com a solidão e com a memória. Eu estou muito convencido de que a solidão pertence a todos, não é algo que possa ser erradicado por completo. Por outro lado, a minha estranha forma de compensar a solidão é a memória. Ou seja, a construção de uma lembrança é algo que serve de companhia.

A gente tem a percepção de que a vida é uma acumulação de situações e de afetos, de carinhos, de nomes, de pessoas que, quer elas estejam ou não conosco, a memória delas é uma companhia para sempre. É como superar a morte. A memória do meu pai, que faleceu, é a companhia que eu guardo dele.

E a solidão serve para termos esse embate frontal conosco, saber que não há ninguém diante de nós que não nós mesmos. Mas a solidão não pode ser um objetivo, mas sim um instrumento para se chegar à companhia. O sentido da vida está nas relações.

Qual é o papel do leitor durante a sua escrita?

Na hora de escrever, eu preciso deixar que não estou a escrever para ninguém, deixar o livro existir por sua própria vontade, como se ele fosse mais forte do que eu. E tivesse uma inteligência que eu não tenho e soubesse, sobretudo, coisas que eu não sei. Porque o livro vai sempre dizer coisas que eu próprio vou ficar espantado. Por isso, eu preciso achar que não tem leitor.

Sem direcionar a alguém, tenho a conquista de uma certa liberdade, mas, mais do que isso, é um fator de genuinidade, de ser verdadeiro. Eu posso dizer que no regresso da escrita, quando encontro os leitores, é algo gratificante e assustador, porque a gente fica pensando: “Será que eles vão achar que eu enlouqueci?”, ou vão dizer: “Valter, dessa vez você se excedeu, isso que você escreveu é uma porcaria!”.

Tenho muitos leitores mais inteligentes do que eu. Então penso: “Por que não obedeci algo que alguém pediu?” [risos]. Por vezes falo com leitores que viram muito mais coisas do que eu, têm experiências de vida mais profundas, e aí eu fico pensando: “Cara, você deveria ter escrito um livro, não eu!”.

Você dizia que não se achava capaz quando criança. Pensava que não seria nada. E de que forma a infância é importante em sua obra?

Meus livros têm uma relação muito forte com a infância porque eu acho que as crianças têm um tipo de inteligência que a gente perde. Elas têm a inteligência da simplicidade, reconhecem o que é bom e o que é mau de uma forma muito verdadeira. Sem esse regresso constante, a gente vai emburrecendo mesmo.

Você criou várias idades para morrer. Por quê? E qual a relação disso com a sua literatura?

A morte foi um tópico que entrou na minha vida antes que eu pudesse compreendê-la. Meu irmão mais velho morreu antes que eu nascesse. Imagina o que é você ser ensinado a amar um irmão que já morreu e que devia ser mais velho que você dois ou três anos, e que, por já ter morrido, virou uma criança eterna, inclusive menor que você? Isso era muito complexo. E meu pai era muito hipocondríaco, trágico. Ele pensava que todo dia ia morrer.

Assim, eu acreditava que a morte era algo que não tinha nem como recusar. E eu fui criando essas datas de quando eu iria morrer. Primeiro aos 18 anos, depois aos 33, e por fim aos 41. Se morrer era tão fácil, como é que eu não morria? Eu era perfeito para morrer e deixar uma fotografia com os olhos enormes e cheios de sonhos.

E as pessoas iam adorar aquela criança morta. Eu quis escrever a tetralogia para viver tudo rápido. Pensei assim: vou direto da vida de uma criança até a de um homem de 84 anos e percorro a trajetória humana. Assim vou viver com urgência e rápido. E, se de repente eu tiver de morrer, eu enganei um pouco a morte.

A literatura o ensinou a lidar com quais questões?

Ela desbloqueou a minha timidez, minha falta de autoestima. Os livros ajudaram a perder um pouco o medo e a aceitar a ser, seja mais bonito ou mais feio, mais inteligente ou mais burro. Ajudou-me a conviver de uma forma mais pacífica comigo mesmo e me deu o poder de completude. De estar com as pessoas, de deixar garantido que elas são amadas, que elas importam para mim, que elas são a minha memória. E que, nesse sentido, elas são a minha companhia, mesmo que elas não estejam mais aqui.

Estou escrevendo uma carta a uma amiga que perdeu seu único filho, e estou dizendo que eu não guardo nem a memória de um filho, porque eu não o tive. Então eu lido apenas com um vazio, e minha amiga, não. Ela lida com uma coisa que é plena. Perder o seu filho, ainda que comece por ser uma dor insuportável, é uma ocupação, seu vazio é fictício. Na verdade ela está muito preenchida dele, carregada desse filho. Há uma diferença enorme entre nós. Não sei se isso vai ajudá-la, mas é um esforço.

Você adicinou o “Mãe” ao seu nome de escritor. O que a maternidade representa?

Uma possibilidade de um legado. Mas não no sentido de bens. Eu acho que a vida é uma espécie de conquista de uma instrução, de um conhecimento. E o filho é o aluno que a gente mais ama. E do quanto é gratificante amar alguém e ser amado.

É claro que eu faço isso com minha mãe, minha sobrinha e amigos, mas há de fato uma forma de amor que a gente guarda para um filho e se o tem a gente usa, se não tem, a gente não usa. E esse amor fica desperdiçado. O amor de filho não rouba o amor de mais ninguém. Minha família concebeu essa educação sentimental para mim e hoje posso ser este cara.

A gente segue um percurso, uma redenção. E depois a gente pensa, estou me redimindo e não tem ninguém para continuar nesse sentido. Uma vez um psiquiatra de Portugal pediu pra eu assinar dois exemplares de O Filho de Mil Homens. Ele disse: “Tenho duas filhas e eu quero que esta seja a herança mais importante que elas recebem… Porque nele está tudo o que eu acho que uma pessoa precisa lembrar para voltar a ser gente”.

Imagina eu, que escrevi um livro cujo nome é o filho de mil homens, e não tenho um filho que possa herdá-lo? Esse livro escrachou a minha ansiedade. Então eu pretendo organizar a minha vida e pretendo tentar adotar uma criança.

Geralmente um autor encontra um estilo que dá certo e prossegue nele. Por que você pensa diferente?

É porque mudar é a oportunidade de saber mais, e de dar certo, em outra coisa. Pra mim é muito importante fugir do que eu já fiz. É claro que não tem como fugir completamente, porque eu fico marcado, “ah, o escritor que escreve em minúsculas”, mas minha tentativa é sempre buscar uma nova vivência.

Sua admiração pelas palavras começou na infância. Como foi isso?

Quando criança, eu pensava como Maputo poderia ser o nome de uma cidade. Parecia palavrão. Então lembro que fui à escola na expectativa de aprender mais palavras. Às vezes tem sentimentos que a gente quase esquece porque deixa de usar a palavra certa. Aí, vamos empregando a mesma expressão e isso vai padronizando tudo, como se fosse o mesmo sentimento. Veja a glória de podermos dizer “saudade”, porque a gente sabe o que é saudade. E numa língua estrangeira a gente não tem isso, fica difícil perceber qual palavra é mais bonita do que outra, a gente não sente profundamente a língua. A gente usa outras línguas como tecnologia, pra pedir comida no restaurante, mas não é uma tecnologia amorosa. Não acionamos a paixão.

Por que “a felicidade não nos redime em relação ao tempo”? O tempo também é perda?

O tempo fica com tudo. O corpo é perecível. A sensação de que o tempo nos ensina mas também é nosso maior predador é inevitável. Porque chegamos a um momento que ninguém vai querer nos abater, mas nós vamos nos abatendo. E o que fica é a memória. A única coisa que pode criar a sensação de que nada terminou.

LEIA TAMBÉM

Mia Couto: “Compramos a ideia de que a tecnologia nos pode salvar”

ENTREVISTA – Um plano de ação para um mundo melhor

Vida Simples entrevista Carla Madeira, autora de “Tudo é Rio”

A vida pode ser simples, comece hoje mesmo a viver a sua.

Vida Simples transforma vidas há 20 anos. Queremos te acompanhar na sua jornada de autoconhecimento e evolução.

Assine agora e junte-se à nossa comunidade.

0 comentários
Os comentários não representam a opinião da revista. A responsabilidade é do autor da mensagem.

Deixe seu comentário