Quando Filippo Ponzio chegou ao Brasil, no século passado, o que ele mais queria era empreender no novo país. Saído de Tramutola, na província de Potenza, na Basilicatta, região da Itália meridional, onde trabalhava como lavrador, decidiu abrir por aqui uma padaria.
Sua família já tinha tradição na produção de pães, mas sempre de forma doméstica. Pela primeira vez, ele resolveu aproveitar a experiência familiar para criar um novo negócio.
Nascia, assim, no bairro do Bixiga, região central de São Paulo, a Basilicatta: uma das mais significativas casas abertas por imigrantes italianos que ajudaram a moldar e definir a forte influência italiana na cidade. E que continua operando até hoje, mais de 100 anos após a sua inauguração.
“A padaria se manteve por mais de um século focando no uso de ingredientes de qualidade e nas receitas de antigamente, como é o caso do pão que deu fama à casa”, afirma Angelo Lorenti, um dos sócios atuais e descendente de Ponzio.
O jeito lento de fazer pão
A fermentação lenta sempre foi uma prerrogativa ali, nunca aberta a concessões — algo que ajudou nesses anos todos a manter o sabor e a textura do pão vendido no lugar.
Mal sabia seu Filippo e as cinco gerações que o sucederam que justamente essa forma vagarosa de preparar o pão, deixando que o fermento faça seu papel por horas a fio e respeitando seu próprio tempo, se tornaria um dos maiores movimentos alimentares dos tempos recentes.
Esse renascimento pegou carona justamente nos hábitos antigos e se propagou feito pão quente na gastronomia recente. Conquistou empreendimentos como o aberto no Bixiga (novos restaurantes, novas padarias…).
E, por conseguinte, uma recente leva de home bakers (ou padeiros artesanais, em tradução livre) dispostos a fazer na cozinha de casa ótimos pães. E, ainda, cuidar de seus fermentos com a mesma dedicação que têm com seus pets.
O futuro do pão está em seu passado
Uma das maiores empresas do mercado de panificação do mundo, a Puratos, encomendou há cinco anos um estudo para entender qual seria o futuro do pão. Depois de ter passado maus bocados por conta de estudos que atribuíam ao glúten problemas de saúde e até o ganho de calorias, enfim a companhia queria entender quais as tendências e comportamentos que poderiam ajudar a mapear o horizonte do pão.
Contrataram a futurista Anne-Marie Dahl para a função, que chegou à seguinte conclusão: o futuro do pão estava em seu passado.
Nas pesquisas feitas, quando pediam às pessoas que descrevessem seus pães favoritos, elas se referiam ao pão dos bons e velhos tempos, como quando a avó os tirava do forno direto para a mesa. Infelizmente, não havia consenso sobre como ele se parecia.
A Puratos contatou etnólogos para ajudar a definir como era esse pão dos velhos tempos, voltando séculos na história. Um dos caminhos os levou ao de Altamura, no sul da Itália, feito com levedura natural e um dos mais antigos do mundo: seus registros datam do ano de 37 a.C., em texto do poeta latino Horácio, considerado”o melhor pão do mundo”.
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Uma biblioteca de fermentos
Os estudos não apenas alteraram o norte de atuação da Puratos como também fizeram com que a empresa decidisse resgatar a história de diferentes pães e criasse, em 2013, a primeira biblioteca de massa madre — ou Sourdough Library, como foi batizada — do mundo, mantido na sua sede em Sankt Vith, na Bélgica, e que VIDA SIMPLES visitou.
Não por acaso, o primeiro fermento da biblioteca foi o de Altamura, trazido da região do estado da Puglia para inaugurar os potes guardados em refrigeradores mantidos a 2 °C. No decorrer dos últimos anos, Karl De Smedt, padeiro da empresa e idealizador da biblioteca, já reuniu mais de 100 amostras de diversos países, como Japão, Estados Unidos, França…
E também do Brasil, com quatro amostras, incluindo, claro, uma da Basilicatta. “Nossa ideia foi ter um espaço para manter toda a diversidade dos mais diferentes tipos de fermentos usados no mundo. Há até um feito de arroz, como no caso de uma das amostras do Japão”, explica De Smedt.
Um pão diferente para cada fermento
Ele viaja o mundo atrás dos mais autênticos sourdough — a proposta é que eles sejam mesmo muito diferentes! — para ir montando sua biblioteca. Como um colecionador de artes ou de livros, ele está também interessado nas histórias por trás de cada um deles.
Em maio, Karl partiu para o Alaska atrás de um fermento raro e centenário que os mineiros levaram até o estado americano para então adentrar no Canadá em busca de explorações no país vizinho. Eles só podiam entrar no país, entretanto, se comprovassem que teriam comida suficiente para o período que permaneceriam ali.
Com o frio extremo do Alaska, o pão era um alimento que podia sobreviver, desde que o fermento fosse levado bem junto ao corpo, para manter a temperatura. E, portanto, permitir a atividade dos micro-organismos que fazem a mágica acontecer.
“Estou curioso como um menino para saber qual o sabor desse fermento”, disse à reportagem antes de embarcar. A ideia é buscar características diferentes, para garantir uma sobrevida desses fermentos — o intuito não é comercial, é de registro histórico.
A nova onda da fermentação natural
A biodiversidade dos sourdough é também um indício de uma nova onda da fermentação natural, que valoriza os processos seculares na produção dos alimentos. Pois essa é uma forma de retomarmos o contato (e o controle) da nossa alimentação, por tanto tempo relegada à indústria.
“Fazer seu próprio pão e cuidar da fermentação é produzir um alimento a seu modo, e só seu. A mesma massa madre pode gerar fermentos distintos. Tudo depende de como e onde você o alimenta”, explica o padeiro Johannes Roos, gerente técnico da Puratos, que produz diversas soluções para a panificação. “Essa é a beleza do mundo dos pães”, afirma com entusiasmo.
A farinha precisa “alimentar” o fermento para que ele não morra, pois trata-se de um organismo vivo. Na biblioteca de De Smedt, além dos fermentos mantidos na geladeira, há uma sala climatizada só com as farinhas enviadas do mundo todo para que cada amostra possa ser alimentada com a farinha padrão.
Já foram identificados mais de 700 tipos de fermentos e 1,5 mil tipos diferentes de ácidos lácticos e bactérias. Como bem resume De Smedt, “mais do que sabores, aromas e características bioquímicas distintas, o que guardamos em cada um desses potes é nada mais que história”.
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RAFAEL TONON é jornalista de gastronomia e não passa um dia sequer sem comer pão — especialmente se for de fermentação natural.
Conteúdo publicado originalmente na Edição 197 da Vida Simples
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