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Cozinhar é um exercício com muito aprendizado
A massa para pizza, a receita do bolo de chocolate, o filé à milanesa... Herdamos também os preparos do que nos alimenta (FOTO: ISTOCK)
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“Todo dia ela faz tudo sempre igual.” Minha mãe era assim, como esse trecho da música “Cotidiano”, do Chico Buarque. Pelo menos na cozinha.

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Ela preparava o almoço para a família. Todos os dias. Quando criança – e es­tudando à tarde –, adorava observar o movi­mento e os cheiros que dali saíam.

O barulho da panela de pressão cozinhando o feijão, o chiado da cebola sendo refogada para pre­parar o arroz. Gostava de ficar em um can­to, observando.

Seus gestos pareciam uma dança cadenciada. Cortar o bife, passar na farinha de rosca, depois nos ovos batidos e novamente na farinha de rosca. Nessa sequ­ência.

Fritá-los e transformá-los em bifes à milanesa, que precisavam ser colocados em óleo quente. Posso ajudar, mãe? “Não, me­lhor você sair daqui. Cozinha não é lugar para criança.” Frustração.

Com o tempo aprendi a me manter silenciosa. Olhar, apenas olhar. Foi desse jeito, pela observação minuciosa dos gestos dela que aprendi a cozinhar.

Não só os dela, mas os de outras mulheres que, de alguma forma, cruzaram meu caminho: minha tia Lybia, a mãe de um namorado cha­mada Suzana e a avó dele, Sônia.

É interessante perceber como consigo re­produzir esse fazer sem nunca ter passado por um curso formal. Nada.

Preparo os bifes à milanesa da minha mãe, a carne de panela da minha tia, tempero o feijão do mesmo jei­to que Sônia.

E, o mais bonito disso: enxergo na minha cozinha todas essas mulheres. Uma rede de afetos e de sabores que se constrói ao longo do tempo não pelo saber estruturado, mas por aquele mais visceral, interno, carre­gado da gente mesma.

Quem te ensinou a cozinhar?

Se a observação me moveu ao preparo de pratos diversos, como será que outras pes­soas chegaram a esse mesmo lugar?

Movida por essa curiosidade, perguntei para gente amadora e profissional quem as ensinou a cozinhar – ou provocou nelas essa vontade.

A confeiteira Joyce Galvão, boleira de mão cheia e autora do ótimo A Química dos Bolos: Recei­tas e Segredos para Dias Mais Doces (Compa­nhia de Mesa), tem uma história interessante sobre isso.

A mãe de Joyce não sabia cozinhar. Mas tinha algo que ela fazia: bolo de caixi­nha, desses vendidos em supermercado.

“Ela preparava, colocava uma cobertura de brigadeiro e levava pedaços como lan­che ao me buscar na natação”, conta ela.

“Eu adorava comer esses bolos da minha mãe. Meu pai também saía muito para comer fora, a trabalho, e sempre comen­tava o que havia experimentado nos res­taurantes. Aquilo me aguçava”, relembra Joyce.

Ela ainda confessa ter assistido muito ao programa de culinária da Ofélia (“Cozinha Maravilhosa da Ofélia”, apresentado pela culinarista Ofélia Ramos Anunciato, de 1968 a 1998) quando criança, antes de ir para a escola.

Todas essas experiências despertaram em Joyce o amor pela cozi­nha e, dessa forma, o desejo de aprender.

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Cozinhar para retomar lembranças

cozinhar Paciência, observação e generosidade também são ingredientes que compõem o aprender a cozinhar (FOTO: UNSPLASH/KELLY SIKKEMA)

Já a jornalista e escritora Mariana Weber, autora do Cozinha de Vó (Superinteressan­te), aprendeu olhando os cadernos de re­ceitas da mãe e da avó.

Ao se tornar mãe, nasceu também o desejo de fazer os pra­tos que comia na infância. “Minha primei­ra receita foi uma torta de banana. Peguei com minha mãe, mas não ficou tão boa. Ela me disse que as bananas precisavam estar mais maduras”, recorda.

Depois dessa pri­meira experiência, Mariana passou a ter o hábito de ligar para a mãe ou para a tia­-avó para tirar dúvidas sobre o modo de fazer as coisas.

“À medida que fazia, fui me sentindo mais capaz de preparar ou­tras coisas também”, diz. A comida, conta ela, sempre foi algo importante na casa da infância.

Nos finais de semana, a mãe e o pai iam para a cozinha. “A comida como centro do encontro, com a família reunida. Essa é uma lembrança boa, que carrego comigo e que desejei retomar.”

Viver é aprender

Não aprendemos apenas pelas vias for­mais, numa escola de culinária, por exem­plo. “Se fosse assim, a humanidade não te­ria chegado aonde chegou. Aprendemos de muitas formas, e uma delas é a experiência afetiva”, me explica Alex Bretas, uma das principais referências em aprendizagem autodirigida do país.

Somos influenciados por aquilo que nos rodeia, é o modo mais natural de aprender. É assim que um bebê entende como andar, falar, comer.

E cozi­nhar observando aqueles que amamos ou admiramos, participar de conversas sobre o comer e de almoços em família, faz parte desse entendimento delicado e até amo­roso. Um entendimento que, lá na frente, pode nos instigar a preparar também o próprio prato.

“Minha avó me ensinou gestos, movi­mentos e delicadezas. Ela nunca me pas­sou uma receita e sempre dizia: ‘Ah, cada dia é de um jeito, depende do seu dia’. Seu arroz branco era algo difícil de explicar. Sublime, para dizer o mínimo”, conta a premiada chef de cozinha Roberta Sud­brack.

Quando o cozinhar ensina a viver

“E ela não conseguia passar a recei­ta, achava bobo demais. Explicava que era importante refogar o arroz com muita cal­ma. Até sentir que estivesse todo soltinho. Não usava cebola, só alho. A água era sem­pre fria, e um dedinho só!”

A referência da avó é algo tão intenso na rotina, dentro e fora da cozinha, que muita gente acredita que foi ela quem ensinou Roberta a prepa­rar algumas refeições.

Mas o aprendizado foi tão além… “A cena mais linda da minha infância era abrir a geladeira e encontrar taças de cristal, acomodando a gelatina. Não era uma gelatina qualquer! Eram ca­madas delicadíssimas de gelatina, creme de baunilha, marshmallow e uma cereji­nha que coroava a obra de arte. Eu ficava boquiaberta com aquela cena”, recorda.

E continua: “Minha vó era rígida, exigente e mandona. Mas era justa e sabia acarinhar de muitas formas, principalmente pela comida. Ouvindo o que falo sobre ela, me enxergo claramente. Pensando bem, acho que a minha avó me ensinou a viver e, nas horas vagas, a cozinhar também”, resume lindamente Sudbrack.

Talvez seja sobre isso o tempo todo.

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ANA HOLANDA é autora do livro Minha Mãe Fazia, sobre memórias afetivas e cozinha. Gosta de cozinhar e se emociona quando a filha Clara a acompanha.


Conteúdo publicado originalmente na Edição 238 da Vida Simples

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