No mês em que completaria 100 anos, Simone de Beauvoir ganhou de presente uma polêmica. Justo ela, que escandalizou o mundo em 1949 ao lançar O Segundo Sexo, livro que se tornou um dos pilares do movimento feminista. Para comemorar o centenário da escritora, a revista semanal francesa Le Nouvel Observateur escolheu para a capa uma foto onde a companheira de Jean-Paul Sartre aparece com o corpo nu, de costas, arrumando os cabelos no espelho de um banheiro. Além das críticas recebidas pela exposição de um ícone feminista, a publicação da imagem gerou uma grande discussão por causa dos retoques feitos na foto, tirada em Chicago, em 1952. Para ficar mais apresentável e mais perto dos atuais padrões de beleza, Simone de Beauvoir foi submetida a uma sessão de Photoshop.
Se até a História precisa se adequar aos padrões vigentes, o que dizer de nós? Em um mundo onde a competição toma conta das relações, os modelos são sempre superlativos: precisamos ser os mais rápidos, desejamos ser os mais belos, lutamos para ser os mais fortes. Comparamo-nos o tempo inteiro, e parece que a perfeição está sempre no outro: no corpo da apresentadora de TV, na grande demonstração de afeto da namorada do vizinho, no empregão do ex-colega da faculdade.
Os nossos são tempos de melhoramento contínuo, de infinitos retoques, de aperfeiçoamento compulsivo. Tempos onde as imperfeições não têm vez. São vistas como falhas que nos impedem de alcançar a excelência. Mas será que elas não podem ser vistas de outro jeito? Como diferenças particulares, como expressão da personalidade, como aquilo que nos faz ser o que somos?
Demasiado humanos
Enquanto lia esses poucos parágrafos, talvez inconscientemente você tenha começado a listar seus defeitos. Os centímetros a menos, a barriga que insiste em saltar da calça, a preguiça que impede aquelas aulas de francês à noite, sua desorganização atávica. Parabéns, você lembrou que é humano. E isso já é um bom começo.
Porque não é fácil sobreviver à avalanche de histórias de transformação pessoal e receitas de superação que desabam todos os dias sobre nós. Tem sempre alguém, do alto do próprio sucesso, dizendo que “querer é poder”. Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, esta é uma das características da pós-modernidade: saem os líderes e entram em cena os consultores, pessoas que “dão” conselhos para o que a gente quer, no momento em que a gente precisa. Eles alimentam nosso desejo de ter exemplos de vida, de saber como os outros se comportam quando lidam com problemas iguais aos nossos. E impulsionam a indústria do auto melhoramento: programas de televisão apresentam “gente como a gente” contando como é possível vencer todas as dificuldades; livros e DVDs ensinam passo a passo como construir o corpo dos sonhos e conquistar o cargo de presidente de uma grande empresa.
Mas é preciso ter cuidado para não criar metas inatingíveis ao querer tanto chegar “lá”. O psicólogo e terapeuta de família Dalmo Silveira de Souza avisa: “Se você está buscando evoluir, melhorar como ser humano, vá em frente. Agora, se através da comparação e da competição você está buscando ter um corpo irretocável e um casamento sem problemas, um emprego de cinema, é melhor uma pausa no caminho”. Porque seu “lá” pode se transformar em lugar nenhum, exatamente o significado da palavra utopia, que vem do grego “ou” (não) e “topos” (lugar).
A comparação
Mas como nasce a percepção dos nossos defeitos e limitações e o desejo de querer ser e ter mais? Ao olharmos para os outros. O escritor e educador Rubem Alves vê na comparação um exercício dos olhos: “Vejo-me; estou feliz. Vejo o outro. Vejo-me nos olhos do outro. Ele tem mais do que eu. Ele é mais do que eu. Vendo-me nos olhos dos outros eu me sinto humilhado. Tenho menos. Sou menos”. Ele mesmo só descobriu que era pobre quando deixou o interior de Minas para morar no Rio e foi parar num “colégio de cariocas ricos”. Então começou a se sentir diferente, falava com sotaque caipira, não pertencia ao mundo elegante dos colegas, sentiu vergonha da sua pobreza.
Porque, até então, Rubem não sabia. Morava com a família numa casa velha de pau-a-pique, numa fazenda emprestada. “Eu sou muito ligado a esse passado, foi um período de grande pobreza, mas eu não sabia que era pobre. O sentimento de infelicidade nasce da comparação. Foi um momento de grande felicidade, um período sem dor. Só dor de dente, dor de espinho no pé.”
Não há como escapar da comparação. Só conseguimos avaliar o que temos e o que somos comparando nossa situação com a de um grupo de referência. “É o sentimento de que podemos ser um pouco diferentes do que somos – um sentimento transmitido pelas realizações superiores daqueles que consideramos nossos iguais – que gera desejo e ressentimento”, diz o filósofo Alain de Botton no livro Desejo de Status. Então o que fazer com esse sentimento? O que fazer se nossa vida parece tão ordinária quando comparada à dos outros?
A primeira coisa é cuidar para que a competição não tome conta das relações, sejam elas afetivas, familiares ou profissionais. Se isso acontecer – e normalmente acontece –, que tal transformar a competição em cooperação? Como? Percebendo que não estamos nas relações apenas para dar ou receber, e sim para cooperar, construir um bem comum. E, depois, tentar ver a vida dos outros como ela é. E não como parece ser. Já está mais que na hora de deixar de acreditar que existe um mundo cor-de-rosa. Não existe. Nem para você nem para a garota sorridente da capa de revista. Os conflitos, as idas e vindas, os erros e todas as outras mancadas do caminho fazem parte do processo de vida. Ver a perfeição apenas naquilo que não se tem ou no que os outros têm é um tipo de comportamento que só gera insatisfação.
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A sombra do consumo
Talvez ajude saber que a insegurança e as imperfeições atormentam muitas pessoas que admiramos. Lembro-me de uma entrevista que fiz com o jornalista e escritor Fernando Morais em que ele disse nunca ler seus livros depois de colocar o ponto final e entregar para a gráfica: “O ideal seria não ter nunca que entregar o livro para o editor. Todo dia acordar e pentear, pentear, pentear…” Já pensou? Por pouco não deixamos de ler Olga e Chatô.
Mas os artistas sabem que existe um limite, que a busca da perfeição não pode impedir a criação. Chega uma hora em que é preciso tomar coragem e colocar o bonde na rua. É o que faz a cantora Fernanda Takai, perfeccionista convicta que diz estar aprendendo a viver com as imperfeições. “Em tudo que me envolvo quero fazer bem, pois tem minha cara, minha assinatura. Mas, no meu caso, essa auto-exigência é positiva, porque acho que tenho evoluído como artista”, diz.
E também é bom não subestimar o peso dos valores herdados. Desde pequenos fomos ensinados – pela publicidade da TV, das revistas e dos outdoors – a ser consumidores e, consequentemente, a buscar satisfação total. O problema é que a realização dos desejos é sempre projetada no futuro, no que está um pouco mais além. E aí, quando nossos desejos são atendidos, perdem automaticamente o fascínio e a capacidade de nos satisfazer. E são substituídos por outros.
Como bons consumidores, também medimos nossos relacionamentos pela satisfação. O sociólogo inglês Anthony Giddens deu até nome para esse novo tipo de relação – “amor confluente” – que substituiu a velha idéia romântica do amor exclusivo “até que a morte nos separe”. As relações de “amor confluente” duram apenas até quando – e nem um dia a mais – dura a satisfação de cada um dos envolvidos.
Enquanto Giddens vê essa mudança das relações como libertadora, Zygmunt Bauman acredita que, hoje, os relacionamentos são considerados como coisas a serem consumidas e não produzidas e, desse jeito, ficam submetidos aos mesmos critérios de avaliação de outros objetos de consumo. No livro The Individualized Society (“A sociedade individualizada”, sem edição brasileira), Bauman adverte que se o parceiro é visto pela ótica do consumo, não é mais necessário para o casal fazer funcionar o relacionamento, garantir que ele sobreviva aos altos e baixos, fazer sacrifícios para que a união dure. Basta procurar um relacionamento novo e melhor no mercado quando o velho não der mais a satisfação esperada e o prazer prometido.
Imagem e verdade
Roberto e Mariana Vieira, donos de uma pequena fábrica de confecções em Santa Catarina, sempre acharam que num casamento perfeito não cabiam conflitos nem desentendimentos e, por isso, durante 15 anos viveram como um casal modelo. Os amigos acreditavam que eram almas gêmeas e sonhavam com um relacionamento igual. Dois anos atrás, o casamento entrou em crise. Roberto e Mariana perceberam que muitas dificuldades não foram enfrentadas para preservar a fachada de casal sem problemas que eles mesmos ajudaram a construir. E um casamento pode se sustentar sem o imperativo do relacionamento perfeito? “Descobrimos que podíamos e deveríamos brigar, expor nossos sentimentos e opiniões, como todas as outras pessoas. E ainda assim continuar juntos”, diz Mariana.
Por isso, antes de sair porta afora mais uma vez, talvez seja bom refletir: se você está sempre à procura da pessoa certa, se termina um relacionamento atrás do outro e ainda sonha com a mais perfeita das criaturas, é melhor se perguntar o que anda acontecendo. Com você. Com seu jeito de estar nas relações. O psicólogo Dalmo Silveira de Souza lembra que, antes de tudo, é preciso desenvolver o autoconhecimento: “Não criar falsas expectativas sobre o que o outro pode dar e sim se responsabilizar por seu jeito de ser. Quando desenvolvo consciência do meu padrão de funcionamento, posso deixar de procurar ou depositar no outro o que é meu”.
Perfeição de massa
Ver o mundo através das lentes do consumo nos faz exigir sempre o melhor, não importa se de um produto, de um relacionamento, de um emprego ou das pessoas que amamos. E, como o feitiço também vira contra o feiticeiro, de nós não exigimos menos que a excelência. A coisa é tão séria que virou fobia. Quem sofre de atelofobia tem medo da imperfeição. E também tem ansiedade crônica. Porque é difícil viver em uma sociedade onde o sofrimento, a tristeza, os defeitos e as fraquezas não são mais tolerados.
A indústria oferece soluções para qualquer tipo de problema e para todos os tipos de bolso: receitas para o sucesso nas prateleiras das livrarias; pílulas da felicidade na farmácia da esquina; o corpo dos sonhos em troca de cheques a perder de vista. Bem-vindos. Esses são os tempos da perfeição de massa, onde os defeitos são vistos como erros da natureza que podem ser corrigidos, deletados, deixados para trás. Dentes desalinhados e pés chatos, olhar estrábico e orelhas de abano, escoliose e miopia, verrugas salientes e septos desviados são coisas do passado.
O corpo deixa de ser determinado e passa a ser inventado. Um “corpo fabricado” pelas nossas escolhas. Livre do sofrimento e do tempo. É o que sustenta o escritor francês Hervé Juvin no livro L’Avènement du Corps (“O triunfo do corpo”, sem edição brasileira). Impotência, esterilidade, envelhecimento, desânimo, menopausa: tudo pode ser reparado. Músculos, cabelos, lábios e seios: tudo pode ser melhorado. O escritor vai além. Defende que, pela primeira vez, estamos diante de uma humanidade realmente dividida. Pelo corpo. “Dentes quebrados ou cariados, corpos envelhecidos, mancos ou mutilados, rugas e cicatrizes separam os mundos mais que o dinheiro”, escreve.
Mas, mesmo para aqueles que não podem “fabricar” o próprio corpo, a beleza não deixa de ser importante. Nas seis vezes em que participou de missões humanitárias na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, o cirurgião plástico e professor da Universidade Federal de Santa Catarina Zulmar Accioli de Vasconcellos lidou com preocupações estéticas em meio à guerra. Nas cirurgias reparadoras que fez, a maioria em crianças e adolescentes com algum tipo de paralisia causada por tiros, encontrou pacientes com o desejo de recuperar os movimentos e, também, de voltar a ser aceitos socialmente.
E não adianta perguntar ao doutor Zulmar qual cirurgia é a mais importante, a mais justificável: o transplante de um polegar na mão de um menino palestino ou o implante de silicone em uma mulher de 22 anos. “O sentimento do paciente com seu problema é um só. Seu sentimento é que é o mais importante.” Porque, se antes o menino escondia a mão para não mostrar a falta do dedo, a moça também arqueava os ombros pra esconder a “falta de peito”.
Aceite suas falhas
Corremos o risco de deixar de ser aquilo que somos para nos transformarmos em um corpo sem marcas, sem história, sem humores. Em mera imagem. Se não é bem essa sua intenção, experimente olhar o mundo através de lentes não viciadas em cânones ou padrões. Lentes que permitam enxergar tudo de forma sistêmica, onde não existe certo e errado nem perfeito e imperfeito. Se tudo depende do contexto e do observador, pare e olhe para você. Mas olhe profundamente. Lembre o que disse uma vez Carl Gustav Jung, psiquiatra suíço: “Quem olha para fora sonha. Quem olha para dentro desperta”.
Sonhar a gente já sonha, e faz muito bem. Mas devemos despertar para um novo jeito de ver e estar no mundo, um jeito intrinsecamente ligado ao nosso ser. Para isso, é preciso deslocar o foco de atenção da aparência para a essência. Ao procurar seu traço fundamental, a soma de características que faz você ser o que é, certamente vai encontrar muitas coisas de que gosta e tantas outras de que não gosta. Mas é bom “aceitar suas falhas com a mesma graça e humildade com que você aceita suas melhores qualidades”, como pede a escritora e jornalista francesa Véronique Vienne em A Arte de Viver Bem com as Imperfeições, um livro que ajuda a ver consolo em nossos defeitos e humor em nossos erros.
Porque pode ser nos defeitos que você insiste em esconder que se expresse sua personalidade. A imperfeição rejeitada pode ser sua marca registrada, aquela que faz com que você seja reconhecido e lembrado. Anular as imperfeições é como matar as diferenças. É como subscrever um abaixo-assinado contra o estilo, a atitude, a essência. Contra toda e qualquer ideia independente sobre beleza.
Lembre-se de que a essência só se fará presente quando encontrar a espontaneidade de um corpo livre de travas e amarras. De que adiantam dentes artificialmente brancos numa boca que não ri? Ponha uma flor nos seus cabelos crespos, enfeite sua miopia com óculos coloridos. Use sua preguiça como antídoto contra o estresse que paira no escritório, sua rigidez para superar um momento difícil e sua gargalhada estridente para quebrar o gelo. Aprenda que mesmo aquele que você considera seu pior defeito, em muitos momentos, pode ser funcional. E pense que talvez as pessoas mais fascinantes sejam aquelas capazes de ser e permanecer naturais.
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