Braille e acessibilidade: avanços e desafios para o Brasil
Como pensar a acessibilidade e inclusão para pessoas com deficiência visual? O braille, apesar de conhecido, é pouco difundido e se soma a outras alternativas de inclusão, como leitores de tela e assistentes de voz.
Há poucos mais de dois séculos, a partir das necessidades de maior acessibilidade a pessoas com deficiência visual, o jovem francês Louis Braille, que perdeu a visão ainda na infância, aprimorou um sistema de comunicação do exército napoleônico e promoveu um dos maiores avanços na leitura de livros e materiais acadêmicos da época. O feito substituiu outros sistemas complexos e passou a ser utilizado em todo o mundo, chegando ao Brasil em 1854 pelas mãos de José Álvares de Azevedo, que havia aprendido a linguagem e decidiu implementá-la no país por meio do Imperial Instituto dos Meninos Cegos.
Do século XIX, passamos por guerras, revoluções tecnológicas, debates e políticas de inclusão, invenções que facilitaram a vida de pessoas com diferentes tipos de deficiência e possibilitaram com que o ambiente privado não fosse exclusivo para esse público. Apesar disso, muito há a ser melhorado, as cidades não possuem infraestrutura adequada, as frotas de ônibus não são adequadas a todos os públicos e as calçadas irregulares são uma dor de cabeça. E, se não vemos pessoas cegas caminhando pela cidade todos os dias, não é porque elas não existem, mas sim porque o lugar promove a exclusão e impossibilita a presença delas ali.
Políticas públicas
“Eu penso que há falta de políticas públicas efetivas, exequíveis, que possibilitem as práticas educacionais, de inclusão social no mercado de trabalho. E falta também às pessoas com deficiência aquela questão de cobrar para que as políticas já existentes possam ser cumpridas“, explica Margareth de Oliveira, doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/Rio). “Isso é um árduo trabalho, não só para os que praticam as políticas de grande escalão, como para quem é usuário”, acrescenta a pesquisadora.
De acordo com a última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada em 2019, cerca de 3,4% da população brasileira tem muita dificuldade ou não conseguem enxergar de modo algum, contabilizando cerca de 6,9 milhões de pessoas, um pouco mais do que toda a população da cidade do Rio de Janeiro. Apesar do número e das necessidades de espaços de inclusão na sociedade, no mercado de trabalho e nas universidade, ainda há obstáculos na obtenção plena dos direitos.
“Outra questão que dificulta é que as políticas públicas ainda são pouco conhecidas ou difundidas. À medida que a mídia propague essas leis, mais pessoas ficam sabendo”, explica Margareth. No Brasil, algumas leis foram se constituindo nesse sentido, como a 10.098/2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência, e o decreto 7.612/2011, que instituiu o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
VOCÊ PODE GOSTAR
– Inclusão de pessoas com deficiência: conheça o Projeto Keller
– Diversidade e inclusão: como pensar as cidades para pessoas com deficiência
– Guiaderodas: app muda vivência de pessoas com deficiência
– Como é passear por um lugar sem enxergar?
Formação de professores
Ainda hoje, boa parte do número de pessoas com deficiência visual são impossibilitadas de acessar a educação básica e as universidades, públicas ou privadas, especialmente porque o sistema educacional ainda não está adequadamente preparado à inclusão e adoção de materiais em braille, que costumam ter um custo maior e estão menos presentes em livrarias, bibliotecas e espaços comunitários. “Nós temos uma dificuldade na formação de professores, nesses profissionais que se formam para que as pessoas cegas saibam usar o braille, e eu penso que essa formação pode começar dentro da universidade, ter políticas que promovam essa formação”, conta a professora Margareth de Oliveira.
A pesquisadora, que realizou parte do seu doutorado durante a pandemia da Covid-19, encontrou dificuldades especialmente em sites de repositórios acadêmicos e de armazenamento de dados e pesquisas. “O grupo de pesquisa que eu participo colaborou muito com a minha pesquisa de doutorado, mas, poxa, se os sites fossem mais acessíveis, claro que eles continuariam colaborando com o conhecimento e outras interlocuções, mas seria um grande facilitador”, explica.
Segundo o BigDataCorp, em parceria com o Movimento Web para Todos, apenas 0,89% dos sites nacionais foram aprovados em testes de acessibilidade, uma grande barreira para pessoas com deficiência visual que vivem na Era Tecnológica.
Mercado de trabalho
Apesar das legislações que obrigam a participação de pessoas com deficiência visual no mercado de trabalho, muitas empresas acabam contratando pessoas desse grupo para realizar trabalhos específicos e que, ao fim, acabam promovendo um certo isolamento do resto da equipe. “A ascensão no mercado de trabalho ainda é pouco discutida, as pessoas ainda estão em uma ideia minimalista de que ‘ah, incluiu, deu um trabalho, é algo que desenvolve uma atividade, não importa se tem relevância ou não, o importante é cumprir a cota’, e não é isso, tem que ser para além disso, tem que se sentir útil, participativo, de fato incluído e com possibilidades de crescimento para que ele se sinta motivado a estar ali“, defende Margareth de Oliveira.
No Ceará, o escritor e bibliotecário da Biblioteca Estadual do Ceará (BECE), Igor Girão, além de trabalhar como responsável pelo setor de acessibilidade do acervo, também publicou histórias em versões digitais e audiobooks, alternativas para além do braille que possibilitam a inclusão de pessoas à literatura e ao conhecimento produzido. Biblioteconomista de formação e mestre em Ciência da Informação, Igor acaba de publicar Além do Véu, um livro que reúne mistério, fantasia e aventura em uma narrativa envolvente que se passa na floresta Amazônica. A obra também pode ser ouvida no Spotify, onde a cada semana um novo capítulo será publicado em formato de podcast.
E quem disse que o braille também não pode ter fontes diversas? Quem enxerga pode ficar confuso em meio a diferentes estilos e formatos de letras, mas o braille é feito em formato único. E foi pensando nisso que o designer Deon Staffelbach, que mora hoje em Portland, nos Estados Unidos, criou um projeto tipográfico voltado para pessoas que não enxergam.
Com símbolos de pirâmides, estrelas e coração, o profissional criou três novas fontes, que chamou de Constelação, Pirâmide e Amor, pensando ainda nas nuances de escrita, como o negrito, que identificado pelas letras de maior relevo, além de ter imaginado a produção de tatuagens táteis no corpo.
Símbolos em braille desenvolvidos pelo designer Deon Staffelbach. Foto: Reprodução
De Louis Braille aos dias atuais, muito ainda temos a avançar, seja na inclusão e acessibilidade no mercado de trabalho e instituições de ensino, ou na aquisição de bens e produtos que ainda não são pensados às pessoas com deficiência visual.
Iniciativas e pesquisadores como Margareth de Oliveira contribuem para o combate ao capacitismo e à pressão pela implementação de políticas públicas, além de profissionais como Igor Girão e Deon Staffelbach, que juntos possibilitam o acesso à literatura por meio de audiobooks, livros digitais e fontes em braille com formatos diversos.
Os comentários são exclusivos para assinantes da Vida Simples.
Já é assinante? Faça login