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Caçadores de ingredientes perdidos
Marco Pinto
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É cada vez maior o número de pessoas que se interessam pelos chamados alimentos esquecidos – ervas ou hortaliças usadas por nossas avós e bisavós e que, agora, estão retornando ao cardápio com gostinho de afeto e carregados de nostalgia

A chef Tânea Romão nasceu em Franca, no interior de São Paulo, mas logo na infância se mudou para a capital. O rumo dessa história mudou em uma viagem a Gonçalves, no sul de Minas. Ela se apaixonou pelo lugar e voltou com um sítio alugado, que passou a ser o endereço dos finais de semana. “Ali eu me sentia no paraíso: tomates, berinjelas e abobrinhas misturavam-se com as ervas colhidas no quintal e viravam conservas, usadas na cozinha em São Paulo e como presente para os amigos”, conta. Até então, seu ofício era de empresária, mas as comidinhas foram ganhando cada vez mais espaço na rotina até que decidiu fechar as portas e se estabelecer de vez em Minas. “Nasci cozinheira profissional na Mantiqueira”, brinca.

Foi no fogão do sítio que começou a fazer geleias e conservas, e se especializou em colocar nos vidros todo o sabor do que encontrava no pomar: frutas, pétalas de rosas, gengibre. Tânea chegou a desenvolver dezenas de receitas e abriu até um negócio para comercializar molhos e geleias. Os produtos eram vendidos no espaço batizado de Kitanda Brasil, que tinha sempre no balcão bolo quente e café fresco.

Quando se deu conta, a pequena loja havia se transformado em um restaurante. Alguns anos depois, ao visitar a cidade de Tiradentes, também em Minas, para um festival de gastronomia, foi arrebatada por uma nova paixão: a pesquisa de resgate de ingredientes e receitas esquecidas ou rejeitadas. “Passei a perguntar para todos o que comiam no passado e não encontravam mais. E se tinham saudades desses pratos ou ingredientes”, diz. “Tinha gente que citava ervas que eu conhecia apenas de livros”. A partir de então, a chef focou seu trabalho nesse resgate. E transformou sua cozinha em um laboratório para que esses pequenos tesouros perdidos ganhassem vida – e sabor! – em suas receitas.

A graça agora é encontrar no quintal ou em caminhadas pelas serras vizinhas esses ingredientes “esquecidos”, que ela tenta reconhecer pela aparência e pelo cheiro. “Eu entendi que, se terroir é tudo aquilo que dá em um determinado pedaço de terra, o nosso ‘terreiro’, o quintal mineiro, tem uvaia, alfazema, cana, ora-pro-nóbis, lambari da horta, jambu, mamão verde, umbigo de banana”, conta ela, que aprendeu que temos apego a sabores, não a ingredientes.

Essa busca de Tânea, que começou movida por um resgate afetivo, é uma prática que se tornou recorrente na gastronomia moderna e nos restaurantes premiados: a procura por ingredientes locais, autóctones, nativos. Ou seja, voltamos a valorizar aquilo que dá no nosso quintal – e não apenas o tomate italiano do varejão ou o caviar beluga do empório.

O mapa do tesouro

O inglês Miles Irving se especializou na prática de sair à cata de ervas e frutas que encontra ao percorrer matas, parques e outras paisagens. Esse tipo de atividade foi batizada de foraging, que traduzido soa algo como forrageio. O termo surgiu nos anos 60 para explicar o comportamento alimentar de algumas espécies. E o foraging voltou à baia com o trabalho de pessoas como Irving, que buscam nos ingredientes silvestres uma ligação com os nossos antepassados, que não conheciam os avanços da agricultura.

Miles trabalha para chefs renomados, como Jamie Oliver e Gordon Ramsey, levando a eles ervas, cogumelos e outras descobertas que são incorporadas aos menus. “Essa prática nos leva de volta aos primórdios da comida, quando encontrávamos as coisas que precisávamos ingerir de uma forma mais selvagem”, diz. Para ele, é interessante que essa relação esteja conduzida não por pessoas devotas à natureza, mas pelos melhores restaurantes do mundo.

“É retorno às nossas raízes e uma jornada para explorar o futuro nos relacionando melhor com o entorno”, defende.Para Irving, com o aumento da população e uma possível crise para alimentar a todos, o foraging pode ser uma revolução na forma de comer. Como? À medida que saibamos identificar e colher os alimentos e nos conectar a eles.

“As pessoas estão procurando algo significativo e real no que ingerem, comer já não é apenas uma gratificação sensorial. Elas percebem que os alimentos podem conectá-las ao solo, à história, à cultura.” Isso também permite uma relação mais sustentável com a terra, já que podemos recolher aquilo que ela oferece, sem impor espécies ou criar monoculturas, por exemplo.

E isso não se limita apenas às ervas e vegetais. Pelo menos é o que nos ensina o pescador Kirk Lombard. Morador de São Francisco, na Califórnia (EUA), ele desenvolveu técnicas para pegar peixes e frutos do mar, com um tipo de “ratoeira” para atrair caranguejos: ele coloca um peixe dentro de uma pequena caixa de ferro e, ao tentar comer a isca, o crustáceo fica com as patas presas.

Cerca de três vezes por semana, Lombard vai à marina e joga sua armadilha e redes na tentativa de pegar o que o mar tiver a oferecer. Nunca volta de mãos abanando. “Há uma boa variedade de peixes e frutos do mar nas áreas urbanas. De mariscos a grandes peixes, que vivem juntos à costa. Não é preciso sair para alto-mar para pescar”, diz ele.

O que surgiu como um interesse pessoal, por uma curiosidade das ciências marinhas, virou a ocupação principal de Lombard, que se tornou consultor informal do departamento da Marinha local. Hoje, além de um espaço no píer, onde comercializa diversas espécies, ele também fornece a um grupo de clientes os peixes e frutos do mar que pesca com as próprias mãos nas áreas urbanas de São Francisco e Oakland.

“Por um valor fixo por mês, eu levo à casa das pessoas o que os dias de trabalho à costa me rendem. É uma forma delas se alimentarem com o que o mar do nosso entorno tem a nos oferecer”, diz ele, que tem cerca de 20 integrantes fixos no grupo. Por US$ 24 a US$47 semanais é possível receber em casa uma cesta com moluscos, pequenos peixes inteiros e filés maiores. “Todos nativos das nossas águas”, conclui.

O resgate

O trabalho de dar um significado para ingredientes locais é, também, uma forma de não deixar que eles se percam na nossa memória gustativa. O chef Virgílio Martinez, do restaurante Central, em Lima, no Peru, criou um grupo multidisciplinar para percorrer o país da selva amazônica à Cordilheira dos Andes, do litoral ao interior, em busca de ingredientes autóctones.

O grupo, que reúne biólogos, antropólogos, fotógrafos e cozinheiros, traça rotas para fazer estudos dos meios e poder encontrar alimentos nativos de difícil acesso ou que acabaram ficando restritos a pequenas comunidades. E, assim, oferecê-los a quem visita seu restaurante.

No caminho, se deparam com espécies e frutas, de caranguejos Uca, nos mangues de San Pedro de Vice, ao cacau branco, em Chulucanas. Mas também conhecem aldeias cujos hábitos ainda se mantêm preservados desde séculos pré-colombianos, quando a comida precisava ser conquistada. “Há muito conhecimento tradicional dos povos e comunidades do Peru antigo, que indicam o uso de ingredientes que se tornaram extintos do cardápio”, conta Martinez.

Dessa forma, conseguem checar com os moradores os tipos de cogumelos que podem ser ingeridos, como algumas espécies de milho são preparadas ou encontrar batatas raras que só dão nas altitudes. Ao resgatar os ingredientes, eles ajudam a manter vivos os hábitos desses povos que estão quase extintos. Além disso, ao trazer para o cardápio uma hortaliça como o zapallo, uma pequena abóbora, ou uma sobremesa feita com a seiva de Huampo, eles estão servindo aos visitantes a história alimentar peruana.

“A filosofia por trás das expedições é afuera hay más [lá fora tem mais]”, conta o chef Martinez. “Sabemos que há muito mais para ser contado da nossa história por meio desses ingredientes que estão por aí, disponíveis e prontos para serem resgatados”, resume.


Rafael Tonon
é jornalista e amante da boa gastronomia. Já foi editor de vida simples e continua a escrever por aqui sempre que pode.

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