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Minha avó jamais tentaria “salvar” a Amazônia
Stephanie Morcinek
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É sobre “salvar” num sentido mais filosófico que quero falar com vocês hoje em Vida Simples. Trago comigo alguém que me ensinou, ao longo de sua vida quase centenária, que melhor do que “salvar” é amar. 


Mês passado acompanhei um evento que discutia questões ecológicas e a preocupação cada vez mais presente com o chamado aquecimento global. Painelistas de várias correntes e pensamentos ambientais apresentavam números quase sempre intercalados com argumentações incisivas sobre a assustadora velocidade com que estamos destruindo todo nosso ecossistema.

Entre uma apresentação e outra, uma discordância aqui outra ali, mas algo recorrente se fazia notar na fala de muitos dos participantes: “Precisamos salvar a Amazônia”. E não é difícil entender de onde vem esse alerta quando lemos ou assistimos a tudo que vem acontecendo naquela que se tornou a última grande área verde preservada do mundo. E é uma preocupação legítima, afinal, não há como negar a gravidade da situação. Mas será que a questão passa mesmo por algo como “salvar”?

Tem algo anterior e mais profundo que não estamos enxergando dentro de nós como um valor em si mesmo, à medida que nos deixamos capturar por soluções aparentemente nobres, mas que, no fundo, só reforçam o quanto estamos nos separando como seres humanos. Se eu quero “salvar” algo, parto do pressuposto que existe um inimigo. Hum… Não seria o inimigo eu mesmo?

Esse “salvar” como única “solução” vai muito além da questão da Amazônia, está engendrado num pensamento estreito com que encaramos a vida. Aliás, acabamos de ver no processo eleitoral brasileiro cada grupo político prometendo “salvar” o país do partido adversário malvado. Há quanto tempo estamos nessa roda de samsara política? Entendem que o “salvar” está na verdade nos aprisionando?

E é sobre esse “salvar” num sentido mais filosófico que quero falar com vocês hoje nesta minha coluna em Vida Simples. Trago comigo alguém que me ensinou ao longo de sua vida quase centenária que melhor do que “salvar” é amar. Vamos nessa?

O jardim de minha avó

Naquela manhã do evento, enquanto meus olhos se perdiam pelos powerpoints dos convidados, me veio à memória uma imagem de minha avó serpenteada pelos galhos da imponente primavera que dava o tom avermelhado ao jardim da casa em que morávamos, em Peruíbe, no litoral paulista. A memória logo deu passagem a um pensamento que me fez refletir para além daquele palco e seus palestrantes.

Dona Nena jamais tentaria “Salvar a Amazônia”. Aliás, dado ao seu jeito muito mais voltado ao universo do sentir do que do falar, desconfio que minha avó jamais cairia na tentação de “salvar” o que quer que fosse nesse mundo. Não que ela ignorasse as causas e sofrimentos humanos, muito pelo contrário.

Ela já sentiu na pele e no estômago as dores da pobreza e da fome, mas é que a vida foi lhe ensinando, com o tempo, que não se “salva” aquilo que já está dentro de nós. Dona Nena já intuía que a Amazônia vivia em seu pequeno jardim regado pelo seu coração.

Eu era uma criança nos anos 80, mas me recordo o quanto minha avó amava passar horas em meio ao verde. A única coisa que ela “salvava” naquele seu pequeno ecossistema era uma certa busca constante por harmonia entre os diferentes. Dona Nena dizia que tinha plantas que não cresciam bem lado a lado porque, segunda ela, em todas existe uma empatia secreta que só a química da natureza consegue articular sem engano.

Acho que estamos precisando encontrar um pouco essa química também dentro de nós.

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Tenho certeza que se a minha avó estivesse viva, ela concordaria com um certo espírito do ambientalista genuíno, que mesmo que o aumento da temperatura parasse ou fosse revertido como almejam os especialistas e entidades ao redor do planeta, valeria a pena continuar cuidando com todo empenho de nossas florestas. Não apenas porque são epicentros de biodiversidade, vida e beleza, mas porque são sagradas por direito. De certa maneira, era isso que dona Nena nos mostrava em seu pequeno recorte amazônico praiano.

Minha avó não amava a natureza por causa dos benefícios que ela nos traz, assim como tenho a certeza de que ela não nos amava apenas porque achava que, dessa maneira, nós a sustentaríamos no final da vida.

Amor não é isso. Jamais cuidaremos do mundo se não amarmos o mundo. O mundo somos nós.

Quanto mais dentro, mais fora

Recentemente entrevistei em meu podcast Daniel Mira, artista e professor de artes visuais. Daniel integra em seu método de ensino conceitos filosóficos voltados à natureza. Na conversa, ele me dizia que um bom fotógrafo começa por saber tirar a câmera e viver a experiência do que se busca retratar, algo como clicar primeiro as cores e formas que correm nas sutilezas internas da essência humana que nos habita para depois, aí sim, materializá-la.

Tendo vivido um tempo significativo com a comunidade dos ribeirinhos do Amazonas, Daniel sabe que é impossível trazer ao mundo a magia de uma bela foto que eternizará o momento, se ela não estiver primeiro dentro de si.

Ouvindo seu relato naquela tarde consegui entender ainda melhor o porquê daquele tom avermelhado e tão único da imponente da Primavera do quintal de minha avó, encantar a todos que por ali passavam. Quanto mais bela a vida que cultivamos dentro de nós, mais fora ela nos tocará.

Conta-se que, certa vez, algumas pessoas na Grécia Antiga perguntaram a Sócrates se ele seria capaz de tornar filósofos os políticos corruptos de Atenas apenas com suas palavras e sabedoria. Sócrates então lhes disse: “Minha mãe, Fenaretes, era uma ótima parteira, mas jamais conseguiria dar à luz uma criança de uma mulher que não estivesse grávida”.

Precisamos ficar um pouco grávidos da verdadeira essência humana. Quem sabe assim diminuímos o ímpeto de querer “salvar” o que já está em nós.

Saudades da Dona Nena e de sua pequena Amazônia de amor. 


PATRICK SANTOS (@patricksantos.oficial) é jornalista, escritor e apresentador do podcast 45 Do primeiro tempo que semanalmente traz histórias de pessoas que se reinventaram. É autor também do documentário “Pausa”. Depois do sabático em 2018, diminuiu consideravelmente a tentativa de “salvar” o mundo.

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