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Medos hereditários
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Às vezes somos tomados tanto pela raiva quanto por medos que definitivamente não são nossos. Você já se sentiu assim? Parece estranho falar isso, mas há muitas pesquisas sendo feitas sobre o tema…

Em outubro de 2018, pesquisadores na California publicaram um estudo indicando que descendentes masculinos de prisioneiros da Guerra Civil Americana que sofreram abusos têm 10% a mais de chance de morrer do que seus pares após a meia idade. Na mesma linha, na Segunda Guerra Mundial, as mulheres grávidas do período da “Fome neerlandesa de 1944” pariram crianças que em sua idade adulta tinham níveis maiores de triglicérides e índices mais altos de esquizofrenia, isso 60 anos depois de seus nascimentos.

Um coletivo de pesquisadores chilenos, argentinos e uruguaios publicizou que os filhos dos ativistas atingidos pela violência de Estado nas ditaduras apresentam uma série de sofrimentos desdobrados desse acontecimento, ainda que não tenham vivido concretamente essa experiência.

Para interpretar esses resultados, uma corrente da medicina propõe o caminho da “epigenética”, que trata das mudanças no funcionamento de um gene sem alteração do DNA, mas com uma memória química de uma situação de estresse ou trauma.

Além desse caminho da medicina, também a psicologia busca compreensões sobre esse tema bastante rico, que costuma ser chamado de daño transgeracional ou transgeracionalidade.

Todas as ações de reparação para sobreviventes de guerra desenvolvidas por pesquisadores no mundo inteiro envolvem cuidar do chamado dano transgeracional.

A psicologia foi ampliando seus referenciais; primeiro centrava-se no indivíduo, depois passou a englobar a família, posteriormente deu mais atenção à cultura (por exemplo, quando consideramos o estresse contínuo que uma mulher sofre numa sociedade intensamente machista) e, por fim, começou a olhar também para outras dimensões transgeracionais da família, ao investigar seus segredos, tabus, traumas antigos, de suas gerações passadas. Podemos ver esse tema hoje central, tanto na terapia familiar sistêmica quanto na constelação familiar.

Para essa dimensão, imaginemos violências sofridas nesses passados e não nomeadas ou palavradas, como por exemplo a escravidão no Brasil, ou de sobreviventes do Holocausto, cujos descendentes podem manifestar sofrimentos cuja fonte não se origina no presente, mas lá atrás.

Desse modo, um evento transgeracional não nomeado torna-se um cadáver sem sepultura, um fantasma desconhecido que retorna. Assim, o terapeuta e seu cliente operam como detetives, numa investigação que procura identificar para além das circunstâncias presentes algo que se esconde no histórico familiar, tarefa bastante delicada, pois se já há invisíveis no presente, o que dirá de segredos dos tempos dos bisavós!

Além da riqueza clínica que essa visão nos proporciona, imaginemos as implicações políticas: a importância de palavrar e nomear uma violência institucional como a escravidão, mencionada mais acima, e buscar seu reparo. E isso para todas as violências institucionais que vieram antes e depois. Por isso, para um país como o Brasil, todas as formas de reparação política, psicossocial, institucional e cultural são urgentes para mitigar os fantasmas do passado, da mesma forma que a Alemanha pratica com relação ao Holocausto.

Em termos clínicos, muitos sintomas podem ter suas origens finalmente rastreadas e, mesmo que não sejam a razão única de um sofrimento, a consideração das heranças psíquico-histórico-familiares auxiliam no enfrentamento de angústias pouco exploradas, escondidas nos porões do nosso coração.

A partir disso tudo, podemos encarar os nossos medos hereditários, descobrindo e nomeando fantasmas.

Myrna Coelho é psicóloga clínica, professora e doutora pela USP. Decidiu recomeçar a vida do outro lado do oceano, onde segue atendendo seus pacientes e dando supervisão online. Por aqui, semanalmente, reflete sobre como podemos viver com mais liberdade de ser. Mande sua mensagem para: [email protected].

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