Você tem fome do quê?
Se fazer essa pergunta vai muito além de entender qual prato você deseja para almoçar ou jantar. É dar os primeiros passos em direção a si mesma
Se fazer essa pergunta vai muito além de entender qual prato você deseja para almoçar ou jantar. É dar os primeiros passos em direção a si mesma
Dias desses eu conheci o Davi. Ele corre descalço no parque do Ibirapuera, em São Paulo. Corre mesmo. Muitos quilômetros. Davi é corredor de rua e não usa tênis pra isso. A conversa começou quando estávamos ambos alongando – eu no pós-treino e ele iniciando o exercício. Quando o vi ao meu lado, não resisti e perguntei como era correr descalço. O que veio a seguir foi um bate papo muito bacana que durou uns dez minutos.
A conversa com ele renderia alguns vários textos – tantas foram as coisas legais que ele me falou. Mas uma delas que me chamou muita atenção foi essa: “nosso corpo sabe correr, sabe qual a melhor postura. A gente é que não repara nele. E quando corremos descalços, sem a ajuda de um acessório que traga conforto, que reduza o impacto das pisadas, o corpo precisa sozinho se ajustar. É um trabalho de escuta e de percepção do corpo”. Minha questão aqui não é discutir se correr com os pés descalços é melhor ou pior. Não sei, até porque eu mesma corro de tênis. Mas a frase sobre escutar e perceber seu corpo ressoou em mim. E isso, sim, tem tudo a ver com comida, o motivo pelo qual habito este pequeno espaço virtual.
Experimente…
Eu demorei muito tempo para entender a minha escuta. Para perceber aquilo que gosto do que não gosto. Acho que as primeiras lições foram dadas pelo meu pai. Ele sempre insistiu para que eu provasse tudo. Não aceitava cara feia diante de um prato de comida diferente: “Você só pode dizer que não gosta se experimentar”. E assim eu fui provando, conhecendo mais sobre os alimentos, os sabores, as texturas e, no meio de tudo isso, conhecendo mais sobre mim mesma. Descobri que adoro quiabo, com galinha ou com carne moída. Mas não sou fã de nozes – gosto apenas de camafeu (docinho de festa feito com o ingrediente). O ponto da carne? Ao ponto! Nem mal passado, nem bem passado. Aprecio as misturas agridoces, amo coentro, não gosto de doce muito doce.
Algo que me agrada é dar uma colherada e perceber como aquilo reverbera em mim. Perceber como os sabores se desdobram. Se meu corpo já está satisfeito ou se quer um pouquinho mais. Escuta. Tudo isso é escuta. Lembro que tive minha fase vegetariana, por opção. Foram cinco anos sem consumir carne, de qualquer tipo. Até que engravidei dos meus filhos gêmeos e, um dia, passando por um buffet de comida, dei de cara com um pedaço de carne, algo que não me agradava mais, e meu corpo inteiro desejou profundamente aquela carne. Era uma necessidade. Entendi. Aceitei. Ouvi. Me servi e saboreei cada pedaço.
O corpo sabe
Hoje, algo que me divirto, é quando minha filha Clara abre a geladeira, olha prateleira por prateleira e decreta: “não tem nada para comer”. E sempre rebato: “o que você está com vontade de comer? É algo salgado, doce? Pense no que seu corpo está pedindo. Sinta”. E, aos poucos, ela vai encontrando as respostas. Como diria Davi, “nosso corpo sabe”. Sabe, sempre. Sobre tanta coisa. A gente é que, muitas vezes, não afina essa escuta tão legítima, tão verdadeira, tão a gente. Entender o que seu corpo quer, deseja, precisa em relação a algo tão essencial como é se alimentar, saciar a fome, é também praticar o tal do autoconhecimento. Tão simples e, ao mesmo tempo, tão profundo. E você? Está com fome do quê?
Nota ao leitor – se você, assim como eu, quiser saber mais sobre correr descalço, há um livro, indicado pelo Davi, bem bacana, escrito por um jornalista que se dedicou a correr sem tênis: Nascido para Correr, de Christopher McDougall
Ana Holanda é editora-chefe da revista Vida Simples, autora dos livros Minha Mãe Fazia e Como se Encontrar na Escrita, ambos da Rocco. Gosta de cozinhar e de escrever, sua maneira de estar no mundo e de lidar com seus sentimentos mais profundos. Escreve mensalmente nesta coluna.
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