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Um jejum de pensamentos que nos machucam
Brooke Cagle | Unsplash
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Neste artigo:

Fazer um “jejum” de pensamentos que nos machucam é possível. O exercício consciente da resistência a qualquer comportamento nosso menos agradável nos dá mais liberdade e força, além de mais disciplina e autonomia.

Sempre tive dificuldade em lidar com as palavras “sacrifício”, “privação” e “sofrimento”.

Nas aulas de catequese, por volta dos meus 9 anos, a Irmã Ivone falava sobre a importância de se fazer jejum na época da Quaresma como forma de praticar a privação para se preparar para a ressurreição de Cristo.

Eu até achava interessante a ideia de ficar sem comer, mas não conseguia entender por que Jesus poderia querer o nosso sacrifício e a nossa penitência por eventuais pecados cometidos.

Passaram-se muito anos e eu conheci a história de Buda, Maomé e do apóstolo Paulo. Também li sobre os muçulmanos, budistas e judeus que jejuavam em determinadas épocas do ano e percebi que a prática era muito antiga e frequente nas religiões.

Em muitos relatos desses praticantes, vi surgirem as palavras “humildade”, “preparação”, “purificação” e “disciplina”.

Com esse novo conjunto de palavras e intenções associadas, comecei a achar muito bonita a ideia de se jejuar. Ou melhor: de se resistir por um determinado período de tempo.

Vou explicar melhor.

Viver no automático

Muita das nossas ações fazemos por fazer. Por hábito, por um comportamento reativo ou automático. Isso não é necessariamente ruim, principalmente quando tais comportamentos são positivos e proporcionam coisas boas.

Mas, essa forma mais mecânica, com pouca consciência, pode ser desastrosa quando os frutos de nossas ações não são doces ou saudáveis.

Meditação e consciência

Quando aprendi a meditar, percebi que minha mente se comportava como um cavalo indisciplinado, indo por caminhos não muito recomendados.

Muitas vezes, peguei-a criticando, julgando, tendo prazer com a comparação, com devaneios impróprios e com uma certa preferência por assuntos que rondavam o desamor, a falta de educação ou a deselegância.

Quando tomei essa consciência, fiquei com vergonha e tentei de todas as formas evitar tais comportamentos.

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Ainda pouco preparada

Naquela época, tudo isso era subjetivo e volátil demais para mim. Eu não conseguia lidar com a minha mente, desligar o interruptor e frear sua tagarelice improdutiva e mal-educada.

Por muito tempo, apenas observava os tais pensamentos surgindo e me sentia pouco preparada para lutar contra eles.

Havia dias bons e outros nem tanto e quando isso acontecia, sentia-me como se houvesse um inquilino mal-educado dentro da minha cabeça que me sequestrava para direções que eu não queria ir.

Um recado da infância

Um dia, em meditação, enquanto serenava a agitação da minha mente, me veio à imagem da Irmã Ivone. Sim, aquela de quando eu era criança.

Ela estava de pé e olhava para mim com um sorriso maroto. Ficou um bom tempo assim, até que pegou minhas mãos e sugeriu: “tente fazer jejum”!

Quando abri os olhos, ainda encharcada pela calma interior proporcionada pela meditação, percebi que poderia exercer uma resistência também aos meus impulsos no campo do pensar e das minhas emoções.

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Jejum de pensamentos

Da mesma forma que as religiões sugerem o jejum de carne e a abstinência do sexo, eu também poderia voluntariamente resistir aos desejos menos felizes da minha mente.

E é assim que venho fazendo todos esses anos. Praticando a resistência.

  • Resisto ao terceiro dia de preguiça quando percebo que meu corpo já descansou e que a vontade de ficar vendo séries no sofá é apenas um relaxamento displicente.
  • Resisto a falar de alguém quando percebo que não há nada para se construir ali e que a boca deseja apenas esparramar-se para passar tempo.
  • Resisto à ideia de ser abduzida pelas redes sociais quando deito na cama, de deixar de dizer bom dia, por que estou com pressa.
  • Procuro resistir também às provocações da mente que tenta justificar por que devo evitar novos desafios ou por que devo ser cautelosa em relação à felicidade.
  • Também resisto às flutuações das minhas emoções que, vez por outra, me chacoalham na direção da irritação ou da falta de paciência.

Pequenas e grandes resistências que vão me educando e resgatando meu poder pessoal.

Mais preparada

Nesse exercício diário e contínuo, sinto-me mais preparada para lidar com as eventuais situações que surgirem e que vou ser realmente convocada a resistir.

Quando algo inesperado e não desejável acontecer, quando perder alguém importante, quando me sentir frustrada porque algo que eu desejava muito não aconteceu.

Resistência consciente

O exercício consciente da resistência a qualquer comportamento nosso menos agradável, nos dá mais liberdade e força. Mais disciplina e autonomia.

Cada um de nós tem os seus desafios e, portanto, seu jejum particular: aquele conjunto de hábitos que podem ser vigiados, podados e educados.

Hoje, entendo que o ato de se oferecer resistência, alinhado à uma vontade genuína de melhorar, pode ser uma prática transformadora.

Quando exercemos uma força contrária aos nossos impulsos menos convenientes, reforçamos nossa natureza divina. Sim, nós podemos escolher fazer diferente.

Não somos refém de nada ou de ninguém. Nem mesmo de uma parte menos nobre da gente.

Leia todos os textos da coluna de Ana Paula Borges em Vida Simples


ANA PAULA BORGES (@anapaula_borges1é fundadora da FlowMind, uma instituição que ensina e promove a meditação como ferramenta de autoconsciência. Ela acredita que é possível inibirmos nossos comportamentos mais felizes e que podemos fazer isso de um jeito leve, corajoso e simples.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples

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