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Evitamos falar sobre a velhice, e só perdemos com a negação
Danie Franco/Unsplash
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Duas sacolas de compras e um pensamen­to: o que iria fazer para o almoço? Era assim que me encontrava quando saí do mercado a pé. Na esquina, uma senhora se aproxi­mou. O sol estava quase a pino. Ela usava um chapéu de sol de tecido. “Você poderia me ajudar a atravessar a rua?”, pediu com delicadeza.

Coloquei as sacolas no braço esquerdo e usei o direito para guiá-la. Ao longo da quadra seguinte, conversamos. O nome dela é Luciana, havia feito um exa­me nos olhos e dilatado as pupilas.

Como assim?, pensei. Dilatar a pupila é igual a não enxergar. Seus olhos praticamente não abriam por causa da claridade. E ela cambaleava e se apoiava nas paredes para não cair.

A velhice, o acúmulo de memórias e a solidão

Perguntei onde morava. Umas cinco quadras de onde estávamos. Perto, mas, para quem estava naquele estado, era como atravessar uma ponte com um desfi­ladeiro embaixo, de olhos vendados.

Ao longo do trajeto descobri que Luciana tem quase 70. É casada. O marido esta­va trabalhando e, por isso, não a acompa­nhou. Não tem filhos… quer dizer, já teve. Um menino. Morreu com 2 anos.

Ela era filha temporã. E teve a companhia da mãe por 26 anos. Os irmãos tinham, cada um, seus próprios problemas de saúde: Al­zheimer, demência… Sobrinhos? Tem. Mas não gosta de incomodá-los.

Ou seja, não tinha mesmo quem pudesse acompanhá­-la no exame e foi sozinha. “Cuidado com o degrau na calçada.” “Va­mos esperar, agora não é seguro atraves­sar.”

Precisamos falar sobre envelhecer

De volta, contei a ela sobre meus pais. Disse que já estavam bem velhinhos. Mas que eu e minha irmã nos revezávamos para levá-los ao médico, ao dentista. Além de tentarmos ser presentes.

“Não temos uma cultura que olha para os velhos com gene­rosidade, carinho. A sociedade os percebe mais como peso do que fonte de sabedoria”, comentei. Luciana concordou e disse que na cultura oriental era diferente.

“É este prédio.” Esperei Luciana entrar. “Que Deus lhe pague.” Enfim, fiquei parada, em frente ao portão, até perdê-la de vista. Pro­vavelmente nunca mais a verei.

Fiquei pensando nos meus pais. Em mim, nos meus irmãos, amigos. Todos vamos envelhecer. Mas não conversamos sobre isso.

Falamos sobre como disfarçar a idade – gastamos bastante tempo e dinheiro com isso, aliás. Caminhei até a minha casa com um nó na garganta que comprime o grito: precisamos falar sobre os nossos velhos. Precisamos falar sobre nós.

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Conteúdo publicado originalmente na Edição 264 da Vida Simples

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