A profunda importância do outro
Culpa, aprovação, tristeza, raiva, amor, alegria ... Não existe nenhuma aventura humana sem o outro.
A grande perplexidade trazida pelo isolamento social foi a consciência do quanto o outro é importante. O espanto não é sem razão. Há muito que carregamos a cultura do individualismo. No século XVII, Descartes declarou o “penso, logo existo”. Para ele o outro é um produto do meu pensamento. O outro sou eu que crio. Porém, depois do filósofo francês e a sua máxima, vieram muitos outros para dizer exatamente o contrário. Porém, já era tarde, o individualismo ganhou raízes e hoje habitamos o planeta do empreendedorismo, do homem que se faz sozinho.
Mas isso só vale para a superfície. Basta cavar um centímetro e eis que surge a extrema importância do outro. O senso comum diz que, nos primórdios, o homem vivia sozinho e depois foi viver em grupo, no coletivo. Ora, passa-se exatamente o contrário: a partir do coletivo, tendo o outro como espelho, é que nasce o indivíduo. É a famosa inversão do sociólogo Émile Durkheim: o individual é um produto do coletivo. Não existe o homem “feito por si mesmo”.
Um bebê olha para a mãe
Mesmo um bebê com alguns dias, já contempla e reage ao outro: a mãe — o primeiro e o mais importante olhar para um ser vivo. O bebê, principalmente quando está mamando, fixa o olhar da mãe. Ele conhece e reconhece-o e é dele que espera toda ação e reação. É o olhar da mãe que aprova ou reprova todos os seus movimentos. Surgimos a partir do outro e esse processo segue pela vida. Somos formados por milhares de outros. Todos os que se dirigiram a nós, mesmo para uma única frase. Aqueles que fizeram uma boa ação ou nos disseram uma palavra de encorajamento. Os que nos amaram, nos desprezaram, nos diminuíram, nos rejeitaram… Todos entraram na composição e são parte do que somos e do que pensamos. Fazem parte do nosso sucesso e do nosso fracasso; dos nossos medos e das nossas ousadias.
Sou para o outro
Alguma vez já se deu conta e mesmo verbalizou que não gostava de determinada pessoa? Sejam quais forem as razões: o outro é irritante, é antipático, é agressivo, não é boa pessoa… A verdade é que o que você não gosta é da pessoa que você é, na presença dessa pessoa. Aliás, preste atenção se isso acontece com frequência, principalmente quando não há um motivo palpável. O escritor Hermann Hesse — Nobel de literatura pelo seu dom de vasculhar a alma humana — diz que quando você odeia uma pessoa, você odeia alguma coisa nela que é parte de você mesmo. “O que não é parte de nós não nos perturba”, diz ele.
Isso porque a consciência surge desse primeiro movimento. A criança abre os olhos, contempla o olhar da mãe, e depois volta-se para si mesmo. Reage, chora, sorri. Ou seja, a consciência é o ato de sair e voltar para dentro de si mesmo. Talvez o mais famoso dissecador do papel do outro foi o filósofo francês Jean-Paul Sartre. “O que eu sou, eu só descubra no outro. O outro — e os outros — detém o meu segredo, me vê como eu nunca me verei”. Mas para não cair no simplismo sartreano de que o “inferno são os outros”, não se deve perder de vista de que também somos “o outro” para os outros. Também temos essa responsabilidade. O fim da linha desse entendimento, é que devemos considerar o outro com a mesma atenção que dedicamos a nós mesmos.
Indiferença e intolerância
Quando entramos no terreno do outro, o mais comum é destacar o que ele traz de negativo. Quando o outro reflete em mim algo que não me agrada, vem o conflito, a intolerância e até mesmo a indiferença. Grande parte dos conflitos — nas relações íntimas, no racismo, na intolerância religiosa — vem da negação do outro. E essa negação não se traduz apenas nos conflitos explícitos. Há quem passe a vida inteira sem vínculos, sem assumir compromissos, numa espécie de “não” ao outro. Toca as pessoas de leve, como se toca uma parede com a ponta dos dedos. Evita-as, como se evita obstáculos.
Esse ou aquele me olham, têm um conhecimento de mim. Mas esse conhecimento não me atinge, não me alcança. Eles estão ao meu redor não como “outro”, mas como um objeto que tem uma função. O garçom do meu restaurante favorito nada mais é do que a função de me servir (exemplo de Sartre), o meu cônjuge tem a função de me acompanhar, é um corpo. São indivíduos que estão à margem e, geralmente, passam pela vida sem deixar marcas.
Autoconhecimento e êxtase
Porque o viver efetivo — com propósito e plenitude — só se dá através do outro. Preciso do outro para experienciar tudo o que a vida tem para me oferecer. E é aqui que alguns se acovardam, porque na aceitação do outro, no compromisso que se assume, pode vir a bênção e a maldição, a tristeza e a alegria; a salvação e a danação. Mas a vida é isso. É saber que se está em risco, é ter ciência que é preciso estar a altura de qualquer acontecimento. E até nesse enfrentamento, o outro é fundamental. É do outro que vem o conhecimento sobre nós mesmos, o discernimento para lidar com a vida com lucidez e serenidade.
Às vezes, o outro mostra uma face do mundo que preferíamos não conhecer. Uma pessoa pode passar a vida inteira sozinha e nunca sentir solidão. Mas um dia, inesperadamente, conhece um outro, descobre o amor, e junto com o amor descobre que está só. (…) Mas é também do outro que vem o mais intenso e acessível êxtase. O grande cronista Rubem Braga descreveu maravilhado o poder do olhar da mulher que ele amava. “De tudo o que ele (o olhar dela) suscita e esplende e estremece e delira em mim, existem apenas meus olhos recebendo a luz do seu olhar, que me cobre de glórias e me faz magnífico”.
Pode haver tristeza, pode haver desilusão; mas toda a alegria do mundo, todo o encantamento de viver pode estar agora mesmo à sua frente, no olhar do outro.
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