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A culpa é minha!
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A culpa está entre nós desde o início dos tempos. Talvez a sua mais contundente aparição esteja no Antigo Testamento, em Gênesis, o livro que narra a origem da vida humana. A estória é conhecida. A serpente tenta Eva, ela come o fruto proibido e depois oferece-o a Adão. Avancemos agora para a parte em que Deus descobre a desobediência. O Altíssimo caminha e não vê Adão. Chama-o e eis que ele surge dos arbustos. Adão, constrangido, apresenta-se. Afirma que ouviu a voz de Deus, mas porque estava nu, escondeu-se. Deus questiona: “quem te mostrou que estavas nu? Comeste do fruto da árvore que te ordenei que não comesses?”.

E Adão, na sua aflição, pensa em Eva — o seu amor, a sua parceira, a sua alma gêmea — e decide que a culpa foi dela. Pensa melhor e decide que Deus também é culpado. Começa a astúcia humana. Em uma única frase, Adão nega a sua responsabilidade e arruma dois culpados para o seu ato: “A mulher que me deste por companheira, deu-me o fruto”. Resumo do drama: a primeira vez que o primeiro homem teve consciência do seu primeiro erro, não o assumiu. O primeiro homem culpou a primeira mulher. E depois o primeiro homem culpou Deus.

Inimigos maiores

E a saga da primeira culpa segue com os seus desdobramentos. Depois de Adão, Eva, quando confrontada, culpou a serpente: um ser vaporoso, enganador, manhoso. E nessa alegoria, a serpente é o próprio demônio. Longe de mim tocar no fio desencapado da guerra dos sexos, mas podemos entender o erro e sentir empatia por Eva. Afinal ela foi enganada pelo próprio diabo. Mas e Adão? Ok. Continuamos. Antes da contravenção, Adão e Eva não pareciam muito conscientes e certamente não tinham consciência de si mesmos. O indicativo disso é que não se davam conta de que estavam nus. Ora, os únicos que não receiam a nudez — embora haja exceções — são crianças com menos de três anos. E eis aqui toda a humanidade da culpa: ela é inseparável do “ter consciência”.

Fui eu?

Por ser demasiado humana, a culpa foi presença constante no radar de Nietzsche. Ele detectou as suas raízes profundas, entrelaçadas no que entendemos por “dívida” e “promessa”. Não há psique humana que não tenha a noção de que devemos e somos devedores de alguma coisa ou de alguém. Assim como para Nietzsche, uma das definições do homem é “o ser que promete” (porque é o único ser vivente apetrechado de memória). Portanto, sem culpa, sem vida.

Delírio torturante

Há quem não compreenda a preocupação de Nietzsche, pensa que é um exagero. Afinal a culpa é um sentimento banal. De vez em quando nos culpamos e — quando somos imaturos — culpamos os outros. Ocorre que subestimamos o seu caráter nocivo. Principalmente devido ao reforço da tradição cristã que romantiza a culpa e trata-a como um sentimento necessário para o arrependimento, portanto, para a salvação. Porém, não se deve perder de vista o poder devastador da culpa. Há quem viva uma vida desfocada, sem propósito, sem sentido. E depois de muita conversa, dissecam-se todas as queixas, faz-se um rastreamento e o que surge? Um sentimento de culpa generalizado. De si mesmo, dos outros, do mundo.

Sem ação

Com exceção da doença mental, qual a razão da maioria dos suicídios? A culpa. Festeja-se muito o ato de “perdoar os outros”, mas o mais benéfico — e também o mais difícil — é perdoar a si mesmo. Quem coleciona culpas acaba imerso no remorso. Nesse estágio, as culpas se transformaram numa dívida impagável. Sem perspectiva de redenção, passa-se a uma existência amarga. Com a caixa de culpas cheia e sem espaço interior, acontece uma espécie de alienação de si mesmo. Tudo o que acontece, é culpa dos outros (afinal, sempre precisamos de um culpado). A vítima do excesso de culpa pára de lutar, desiste da ação. Reclama de tudo, isola-se, entra em depressão e procura “ausentar-se” com aditivos como o álcool.

Não substime

Outro agravante é que o senso comum vê a culpa como um problema de fácil resolução. Afinal, a receita é óbvia: Elimine-a! Os manuais de autoajuda ordenam: “Pare de culpar os outros e a si mesmo. A culpa prende, paralisa e traz sofrimento. Esqueça a culpa e passe a ver responsabilidades. Essa é a chave porque quando assumimos a nossa responsabilidade, partimos para a luta. Agimos e consertamos as coisas. A tarefa é muito simples!”

Claro que não é uma tarefa simples! Primeiro, porque — passo ao clichê — entre o que se pensa e o que se sente há uma distância enorme. Passo a um exemplo: racionalmente enxergamos um erro, mas junto com ele vem um sentimento difícil de se lidar,  a vergonha. Segundo, porque forças gigantes emergem para inviabilizar a “tarefa simples”. A primeira delas — e começo pela maior — é a nossa mania de grandeza existencial. Assumimos que somos (quase) perfeitos  — (quase) nunca erramos  — e achamos que estamos no controle total das nossas vidas. Fazemos e acontecemos.

Fui eu

Se você acredita que tudo depende de você e se a vida não acontece como você queria, de quem é a culpa? Ora, “é sua!”, responde o seu delírio de grandeza. E nessa crença, abre-se a porta para a culpa, ela entra e se instala. Persistente e labiríntica, a culpa vai resistir, não será fácil se livrar dela. Quem experimenta uma perda — seja no trabalho ou numa relação — vê nitidamente esse processo. Revisamos os acontecimentos — principalmente os últimos — é só encontramos os nossos erros. Depois de uma ligeira paralisia, vem o alerta: e se eu tivesse feito isso e não aquilo? E se eu tivesse dito isso? E se eu tivesse feito aquilo? Finalmente faz-se luz e você enxerga tudo com nitidez. O coração dispara. “A culpa foi minha. A culpa foi toda minha”.

Pise no terreno

Depois de se livrar do delírio de achar que você controla a sua vida — e aqui tenho que recordar que esse é um dos pilares da filosofia estoica — assuma as suas imperfeições, seus erros, suas falhas. Mas também assuma a sua capacidade de aperfeiçoamento e reinvenção. Assuma as suas dualidades e aceite-se. Não assimile nenhum rótulo — e não permita que ninguém faça isso! Você pode ser alegre e também triste. Pode ser generoso e mesquinho. Ter coração aberto e  também ter toque de recolher; ciumento e possessivo, mas também pode saber soltar a mão. Faça da sua condição dualista um mantra para a sua vida de todos os dias. Quando interiorizamos o nosso eu por inteiro, fica mais fácil assumir os erros, aceitá-los e consertá-los.

Menos bom

E, claro, não é para exagerar no acolhimento dos erros. Você não precisa se transformar num personagem do dramaturgo Nelson Rodrigues e bradar aos céus o “Eu não presto” ou “eu me arrependo do marido, não me arrependo dos amantes”. Manter diálogo e negociar, não é mimar. Voltando a Adão e Eva. Esse simbolismo poderoso da nossa gênese não deve ser ignorado, mas para sermos realistas é preciso que se aceite que mesmo se conseguíssemos eliminar todas as cobras/erros que nos tentam, não estaríamos a salvo. Afinal, o inimigo somos nós. Carregamos dentro de nós, a falha, a imperfeição e o erro. Mas podemos sempre caminhar — com lucidez e realismo — em direção ao melhor. E sem culpas!

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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