Reflexões necessárias (e difíceis) sobre o suicídio
Não se pode falar do suicídio como se fosse uma questão individual. Num mundo competitivo que a cada dia se torna mais inóspito, o sofrimento das pessoas só tende a aumentar
Aviso de gatilho: para quem tem sensibilidade com o tema, o texto pode causar sensações desconfortáveis que talvez você prefira evitar.
A vida realmente é um bem a ser mantido a qualquer preço?
Já que estamos falando sobre coragem-covardia, justamente no mês em que se convencionou a chamar de “prevenção ao suicídio”, vamos conversar um pouco sobre esse tema delicado. A proposta aqui é sair do lugar imediato, comum, do pensamento óbvio, pois saúde mental não combina com superficialidade, equilíbrio não diz sobre evitar conflitos.
Muitos sofrimentos são justamente modos das pessoas clamarem por menos superficialidade. O mundo em que vivemos nos joga o tempo todo para pensamentos diretos, simples e palatáveis, para que as pessoas não se comprometam de fato em aprofundar reflexões. Já sabemos que esse é um dispositivo do patriarcado para melhor servir ao mundo capital. Ou seja, não nos aprofundamos em nada para que nenhuma transformação profunda aconteça. Mas e esse papo de suicídio? O que tem a ver com isso?
Vale lembrarmos alguns dados. Em diferentes momentos da história da humanidade tivemos mudanças na ideia da vida como valor supremo que precisa ser mantida a qualquer custo. Em momentos em que é necessária maior mão de obra disponível, a vida vira um valor supremo, garantida pelos discursos da saúde, religiosos e políticos em geral. Momentos em que o excedente de mão de obra é um problema, discursos como o de encarceramento em massa e o de pena de morte tomam maior proporção.
Isso quer dizer que, filosoficamente, o discurso de que a vida é um valor que precisa ser mantido a qualquer custo vai mudando de acordo com o momento político que vivemos.
Hoje em dia fala-se de uma epidemia de suicídio, mas esse discurso esconde uma verdade muito maior e complexa. A questão não é individual, não está na pessoa, mas no mundo em que vivemos. Um mundo que explora as pessoas à exaustão, que não apresenta alternativas de acolhimento e pertencimento que sejam gentis, que só propõe uma compreensão de responsabilização sobre o sofrimento individual, jamais compreendendo a dimensão coletiva da dor: esse é o convite para o sofrimento, a responsabilidade solitária. Esse mundo não oferece sentido, porque o sentido se forma no compartilhamento, no encontro.
Outro tabu, só para polemizarmos ainda mais, é que nem sempre suicídio tem a ver com sofrimento. Sim, é possível decidir não viver mais simplesmente como decisão, e não como sintoma.
A morte é um tabu na nossa sociedade, e isso se revela no suicídio, no aborto, na eutanásia e no parto. Esses acontecimentos, da ordem da vida, assumiram status de coisa da ciência e se tornaram dispositivos, por excelência, da gestão do patriarcado, especialmente no corpo da mulher. Os discursos sobre o suicídio, pensados por esse prisma, são dispositivos para operar controle sobre os corpos, o que é estudado pela biopolítica ou necropolítica.
Não se pode falar do suicídio como se essa fosse uma questão individual. Num mundo competitivo, sem oportunidades de trabalho ou de lazer, que a cada dia se torna mais inóspito, o sofrimento das pessoas só tende a aumentar. Colapso ambiental, político, econômico e violência são aspectos que explicam essa alegada epidemia de suicídio mais profundamente, e é muito melhor entendê-la coletivamente, em sua amplitude, do que tratá-la somente como uma questão de responsabilidade individual.
Então, a partir desses apontamentos, cabe discutirmos como podemos criar possibilidades de acolhimento (nem de julgamento, nem de cerceamento, muito menos de submissão) necessariamente coletivas e gentis para todos nós. Abrir espaço para olhares diferentes é o início dessa jornada de construção coletiva.
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