Os caminhos para uma vida autêntica
Em tempos de superficialidade, reconhecer nossas profundezas e entender quem somos é o que ajuda a vida a ter mais graça e sentido
A sensação de que não conseguiremos fazer tudo o que queremos é um estado crônico. Condição interiorizada, a nossa atração é pelo que é rápido. Quais são os títulos mais vendidos nas livrarias? Jamie:15 Minutos e pronto!, Cuide do seu Casamento 5 Minutos por dia, 15 Minutos com o seu Filho, Em forma em 10 minutos, Contos de um Minuto, Mindfulness em 15 Minutos, Filosofia em 60 Segundos!! E atenção: essa lista não é retórica alarmista: os livros existem. Aliás, se você achou que 15 minutos com o seu filho é muito tempo, há o 10 Minutos com o seu Filho. Não tenho nada contra a performance e não sou indiferente aos benefícios da tecnologia, porém, não posso deixar de alertar para o efeito colateral da rapidez: a superficialidade.
Nicholas Carr — um estudioso dos efeitos da internet em nossos pensamentos e percepções — na obra Os Superficiais compara a condição do homem atual com a de uma panqueca. Assim que a massa cai na frigideira quente espalha-se até ficar com a mínima espessura possível; apenas o suficiente para evitar a ruptura. Fazemos o mesmo. Na histeria apressada nos espalhamos e tentamos ocupar o máximo de espaço possível, comprometendo a nossa densidade. E assim, passamos a fazer parte da categoria de pessoa superficial: sem consistência, sem conteúdo, sem autenticidade, sem assinatura em primeira pessoa. Apesar dessa condição estar no seu ápice, não é nova. Ela foi exposta na obra Ser e Tempo de Martin Heidegger. O filósofo alemão nominou o indivíduo diluído e inautêntico — e segundo ele, em queda — como o “homem da técnica”.
Heidegger expõe os riscos da superfície moderna. Trata-se de um terreno frágil, da ilusão, da mentira, das aparências, do duvidoso, do que parece ser e não é. Nesse cenário não sabemos no que acreditar, em que ou em quem confiar; não enxergamos as nossas necessidades, o que realmente queremos e perdemos a capacidade de tomar decisões. E assim, seguimos dispersos, inseguros, ao sabor do vento, sem mapa e sem rumo; pegando e largando sem critérios definidos. Consciente da sua fragilidade, o indivíduo inautêntico vive em permanente tensão. E quando surge o encontro com o outro, a tensão é ampliada. O superficial não receia apenas a relação consigo próprio, receia também a relação com o outro. Tem medo da profundidade e do compromisso que vem da relação com o outro.
Para ser justa, a vida acelerada não é a única responsável. A tendência para o que é mais fácil e o medo de saber quem verdadeiramente somos compõem o palco da superficialidade. O encontro consigo próprio é um temor natural, ligado ao instinto de auto-preservação. Teme-se que esse encontro seja desagradável, redutor da autoestima, promotor de sofrimento e — para os mais dramáticos — um embate de onde não sairão vivos. As razões para esse medo são muitas, mas podemos citar o encontro com memórias dolorosas, o apego às mentiras que aderimos sobre nós mesmos, o receio de se descobrir uma fraude e o medo do vazio. Passada essa etapa, há ainda as dificuldades do percurso: o processo não é rápido nem fácil. É preciso se livrar de cada uma das mentiras, das máscaras sociais construídas para sustentar essas mentiras e, por fim, é preciso mais um extra de coragem para lidar com a verdade recém exposta.
À parte os mergulhos profundos, no dia a dia, o que é possível fazer para evitar o destino kafkiano de se transformar numa panqueca? Como impedir que a superficialidade domine os nossos dias? Para o bem da clareza, sugiro um exercício prático. Quando estiver pela vida, não agarre e largue coisas com facilidade. Faça uma seleção. Pegue apenas o que a sua intuição sugerir e, ao fim do dia, leve-as para a sua caverna. Lá, confronte o seu botim à luz do seu acervo, dos seus valores. Faça uma seleção do que você quer e não quer. Do que combina com o que você é, que traz significado, que adensa o seu terreno. Em outras palavras, o que lhe interessar, não deixe na superfície, leve para casa, para a sua vida interior. É difícil? É desgastante? É. Mas o esforço necessário para a vida autêntica é o mesmo da vida superficial. A diferença é que o vigor, o entusiasmo, a liberdade e a segurança de uma vida autêntica é imensamente superior.
Quem acompanha o meu trabalho e conhece o meu apreço pelo poema Torso Arcaico de Apolo — “resplandecera como pele de fera” — poderá encontrar aqui uma contradição. Não é. O que os versos de Rilke destacam é que às vezes a profundidade é tão poderosa que emerge, avança e mostra todo o seu esplendor… na superfície.
MARGOT CARDOSO (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, contará histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.
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