O bem e o mal de sonhar acordado
As nossas ações ocupam e traduzem grande parte da nossa personalidade. Porém, o nosso conteúdo mental — os devaneios, o sonhar acordado, a imaginação — também é parte fundamental do que somos.
As nossas ações ocupam e traduzem grande parte da nossa personalidade. Porém, o nosso conteúdo mental — os devaneios, o sonhar acordado, a imaginação — também é parte fundamental do que somos.
Eu sou o que a maioria classifica como “distraída”. Sonhar acordado, mundo da lua, capacidade de abstração, “cabeça no ar” são expressões que sempre estiveram a minha volta. Recém chegada a Lisboa, eu me deslocava duas vezes por semana até a universidade. Paulistana, não habituada a transportes públicos, não confiava muito no rigor do horário informado. Chegava sempre 10 minutos adiantados. Certa vez, cheguei e já havia duas pessoas. Pensei que ainda era cedo porque eu costumava ver ali cerca de quatro. Sabendo que tinha tempo, distrai-me e quando olhei à minha volta, já não havia mais ninguém. O ônibus chegou, todos embarcaram, e eu fiquei.
Infelizmente esse episódio não é o único. Tenho uma coleção de situações semelhantes. Há quem considere esse nível de abstração fora do normal, eu prefiro acreditar numa vida interna intensa. Seja como for, a verdade é que vivemos duas vidas: uma que acontece em nosso entorno e outra que acontece dentro da nossa cabeça. E, mais do que isso, a vida abstrata está na frente. Porque a maioria das coisas que nos acontece efetivamente, acontecem primeiro no nível mental. Em outras palavras, os planos, os projetos, as intenções, as vontades acontecem primeiro na nossa cabeça. E só numa segunda fase, o conteúdo do que pensamos se materializa, quando partimos para a ação.
Qual é a causa disto?
Nesse sentido, o que seria esse conteúdo que passa pela nossa cabeça e qual é a sua utilidade? Primeiramente, é preciso que se diga que essa “vida interior” faz parte da nossa humanidade. O sonhar acordado, os devaneios, a capacidade de abstração, estão ligados ao conhecimento, a criatividade e a inovação. Nossos grandes diferenciais humanos. E, nesse campo, em primeiro lugar, está a causalidade. Isto é: estamos sempre pensando nas causas de tudo o que acontece. Essa capacidade é um dos nossos diferenciais. Aquilo que nos distingue de todas as outras espécies.
De acordo com o filósofo alemão Emmanuel Kant, a causalidade é um conhecimento a priori. Em outras palavras: já vem de fábrica. Desde que nascemos buscamos as causas das coisas. Se estiver um bebê e um gato na sala e jogarmos um novelo de lã. O gato correrá atrás do novelo, o bebê vai olhar para a direção de onde veio o novelo.
Sonhar acordado
E o quanto ocupa a nossa cabeça essa façanha humana! De um simples contratempo a uma tragédia, queremos saber a razão. Perseguimos obstinadamente as causas. “Por quê eu?”, “O que foi que eu fiz?”, “Onde eu errei”. Revemos os acontecimentos e somos torturados pelo “e se eu tivesse feito isso?” “e se eu tivesse dito aquilo?”. Porque, para nós, é óbvio: sempre tem uma causa.
Quando escrutinamos as causas, vamos buscá-las no passado. Entretanto, as viagens mentais contemplam igualmente o futuro. Um exercício fundamental, uma vez que não suportamos viver como uma folha ao vento. Precisamos fazer planos, traçar objetivos, vislumbrar novos cenários, imaginar futuros possíveis. Se a busca das causas nos tortura, o exercício do futuro, nos acalenta, consola. Dá prazer. E daí o perigo do sonhar acordado.
A magia em nós
É certo que grande parte das maravilhas desse mundo foram imaginadas. Mas esse exercício também comporta perigos. Corremos o risco de desperdiçar energia imaginando realidades que nunca acontecerão. E não acontecerão não apenas porque não agimos para transformá-las em realidade. Mas porque simplesmente não são viáveis. E por que não são? Alguns conteúdos do sonhar acordado estão na categoria do “não depende só de mim”. O problema é que, apesar disso, não desistimos deles. São bons demais para serem abandonados.
Olhe para a sua vida e tente identificar esses sonhos. Eu continuamente me apanho nesses exercícios. Na categoria dos desejos que não dependiam só da minha vontade, sonhei por um bom tempo viver em Bruxelas. Imaginei-me vivendo num edifício art noveau. O cenário era muito nítido: imaginava o meu dia a dia, as rotinas do bairro, a decoração do apartamento… Em outro tempo, imaginei-me em outra profissão: professora de filosofia. Imaginava até as perguntas dos alunos. Esse sonho, ao contrário do primeiro, dependia muito da minha ação. Bem… não sou professora de filosofia.
Os pés no agora
Qual é o mal de tudo isso? Os excessos: quando o conteúdo mental é maior do que a nossa capacidade de ação. Afinal, quando pensamos nas causas estamos presos ao passado e quando pensamos sobre o que queremos — e ainda não temos — estamos no futuro. Resultado: sobra pouco tempo para o presente, justamente o único lugar onde acontecem as ações.
Para esse equilíbrio precisamos da ajuda dos estoicos. Nas várias cartas que Sêneca escreveu a Paulino, reunidas na obra a “Sobre a Brevidade da Vida”, ele diz que quando o “homem não sabe para qual porto está indo, nenhum vento é favorável”. Claramente, um alerta, para a importância de um conteúdo mental, pensado, refletido. Mas, também alerta que muitos “despendem muito de seu tempo perseguindo objetivos sem valor ou sentido”.
Os estudiosos de Sêneca afirmam que as cartas têm como objetivo convencer Paulino (um amigo e talvez também parente) a abandonar o cargo de chefe dos depósitos de trigo do Império Romano e dedicar-se à filosofia. Mas, quando pensamos nos argumentos de Sêneca, nos sentimos todos paulinos. Sêneca fala para nós.
Sonhar acordado está na frente
Entretanto, apesar dos alertas, muito mais do que buscar as causas do que nos acontece, pendemos em demasia para o sonhar acordado. E o mais delirante é que mesmo quando nos convencemos de que não é viável, continuamos a alimentar o sonho. Porquê? Porque a vida ideal é irresistível. Por que, às vezes, a vida que imaginamos é muito melhor do que aquela que nos acontece de fato. Mais do que isso, quando imaginamos a vida que queremos, nunca imaginamos o trabalho que será preciso para que ela aconteça.
E a maioria das vezes, o trabalho para se conquistar a vida sonhada é grande demais. Você pode ter uma amostra dessa realidade numa viagem. Quando você pensa nela, você já pensa no destino. Delicia-se com o ócio, com a novidade da paisagem, com o descompromisso dos passeios sem destino. Nesse sonhar acordado, arrumar as malas, os contratempos da viagem, as filas no aeroporto, o excesso de turistas, não fazem parte do pacote.
Sonhar com a linha de chegada
Mas, esse não é o maior agravante do sonhar acordado. Há um ainda mais danoso: a covardia. Muitas vezes, fabricamos conteúdos na nossa cabeça para fugir do esforço de uma ação necessária no presente. É mais fácil sonhar do que viver. No sonho não há falhas, frustrações ou fracassos. Imagina-se um futuro para fugir de um presente que não nos agrada. E de sonho em sonho vamos deixando de viver. Perdemos o dia na expectativa da noite. E quando chega a noite, acovardados, divagamos com medo do amanhecer. É preciso estar atento a essas fugas para que a vida não aconteça apenas no nosso pensamento.
À parte esse desequilíbrio, não há mal nenhum em sonhar acordado. E nisso temos o apoio do enorme Nietzsche. Os conteúdos mentais fazem parte do que somos. Aquilo que vivemos nos sonhos — assim como o olhar para o passado – passam a fazer parte da nossa alma como qualquer outra coisa que tenhamos vivido realmente.
Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e mestre em filosofia. Mora em Portugal há 18 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.
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