Quando a voz interior é a nossa inimiga
Acusação. Desprezo. Indiferença. O que fazer quando o nosso maior opositor mora dentro da nossa cabeça?
Acusação. Desprezo. Indiferença. O que fazer quando o nosso maior opositor mora dentro da nossa cabeça?
Desde sempre somos aconselhados a escutar a nossa voz interior. Precisamos estar conectados com nós mesmos, observar o que nos vai no alma. O proposito, a felicidade, a plenitude… todas as experiências que fazem a vida valer a pena têm esse pré-requisito: precisamos nos escutar. Quando vêm os desafios, as escolhas difíceis ou temos que lidar com perdas dolorosas, mais do que qualquer ajuda externa, precisamos da nossa voz interior. É dela que vem tudo o que sabemos, a nossa reserva racional e emocional. E ela que nos recorda as nossas armas e a nossa força. E é ela também que serena a mente e nos conforta.
Mas o que fazer quando essa voz ao invés de nos guiar e acalmar os nossos medos, decide se voltar contra nós? Você diz: “Ok. Foi melhor assim” ou “já sabia que o desfecho seria esse”. E a voz interior discorda: “Não. Não foi melhor. Você foi incompetente, deveria ter feito isso e aquilo”. “Você é um caso perdido”. Essa conversa interna é muito frequente e, às vezes, ela acontece em voz alta. Entretanto, há um cenário ainda mais grave: quando a voz interior sai do controle. Quem já experimentou consolar alguém transtornado sabe do que estou falando. Essa cena também acontece dentro da nossa cabeça.
Velha conhecida
E perceba que aqui eu não estou falando em sentido figurado. A voz interior não é uma alegoria para o ato de pensar, ela é parte importante do nosso eu consciente e já existem vários estudos sobre o seu funcionamento. Em 1920, o psicólogo russo Lev Vygotsky divulgou um estudo sobre como a criança “cria” desde muito cedo a sua voz interna e como ela tem um papel decisivo na sua formação. Nas brincadeiras imaginárias, a voz interna ajuda a orientar o comportamento, a aprendizagem e o autocontrole. Primeiro, a criança aprende a repetir o que diz a sua voz interna. Ela fala sozinha. Depois, a criança personaliza a voz, o amigo imaginário. Com o desenvolvimento, a voz interior transforma-se em duas. Aqui o retrato das nossas contradições internas que mostra uma voz boa e outra má. Um anjo e um demônio que nos aconselham. Mais tarde, o nosso repertório aumenta e assumimos que a voz interior é múltipla. Afinal, descobrimos muitas vozes dentro de nós.
Pandemia
Agora na quarentena — quando estamos mais sós e, portanto, mais disponíveis — essas vozes internas são mais audíveis. Não. Você não está enlouquecendo. Você não está ouvindo conselhos do seu micro-ondas ou críticas da sua torradeira. É a sua própria voz, uma espécie de comentarista interno que narra para você mesmo as suas experiências e descobertas. Mas você tem razão em se preocupar. Estudos mostram que pessoas com quadro de esquizofrenia, bulimia nervosa e autismo são propensos a escutar várias vozes em simultâneo. Sobreviventes de tentativas de suicídio relatam que foram empurrados para o ato por “vozes”. A regra é: quanto menos normalidade, mas aumenta o caos de vozes.
Coisa de gente que pensa
Mas nem todas as “alucinações auditivas” são patologias. O caos sonoro também surge quando estamos sob estresse — daí o difícil autocontrole nos momentos difíceis. Um exemplo prático — e ainda dentro da normalidade — é quando viajamos. Várias vozes emergem, cada uma a tentar controlar as múltiplas tarefas. Uma voz diz: “há que pesar a mala”. Outra: “tenha o passaporte em mãos”. Outra: “cheque a porta de embarque”. Por isso, nas situações de estresse ficamos desnorteados, como se fossemos solicitados por várias pessoas ao mesmo tempo. Aqueles que estão sob o efeito de aditivos também experimentam o comando de várias vozes em simultâneo. Usuários de LSD relatam que “vozes” repetem continuamente avisos de perigo.
Batalhas em casa
Mas voltando à normalidade, crises, perdas e cenários de insegurança podem transformar o “diálogo interno” num caos. Você está seguindo a sua vida, tentando digerir as suas perdas (ou crises, ou inseguranças) da melhor maneira possível e uma voz se levanta: “Você sabia que isso iria acontecer — era só uma questão de tempo”. Uma outra reforça: “Pelo amor de Deus, como você foi negligente com a sua vida!” Outra grita: “Engole o choro, seja racional”. Outra voz recua: “Eu penso isso, mas não sinto isso”. Outra está indignada: “Ah! Você sabia, sempre soube”. Outra voz assiste a tudo e declara: “Não há saída”. Outra voz, completamente exausta, diz: “Está tudo perdido”… E as vozes se repetem numa espécie de looping. É óbvio que poucos se dão conta dessas etapas porque elas são muito rápidas — a velocidade vai muito além da verbalização. Estudiosos afirma que elas acontecem num ritmo médio de quatro mil palavras por minuto — 10 vezes mais rápido do que a fala verbal e muito mais condensadas porque não precisam de frases completas. Afinal, sabemos o que queremos dizer.
Eu não vi
Acaba aqui? Pode acabar — essas pequenas batalhas são frequentes na vida. Sai da normalidade quando a dor psíquica é muito intensa — ou dura mais do que podemos suportar — e espalha-se, atingindo o corpo físico. Um misto de reação química com a sensação de morte. Taquicardia, boca seca, opressão no peito. Sim: esse é o retrato falado da temida crise de ansiedade. Um dos principais males da modernidade e que não pára de fazer vítimas nesses tempos de pandemia. A origem da crise de ansiedade é muito rápida, mas os efeitos no corpo prologam-se no tempo. A taquicardia oprime o peito e danifica o coração, a tensão atinge os músculos causando dores generalizadas e — para alguns — tem início uma dor de cabeça que dura dias. Uma dor que o paracetamol 1000 não consegue travar.
Há saída?
Pode haver muitas. Alguns partem direto para a medicação para travar os danos ao corpo. Porém, é preciso ter a consciência de que é um abrigo para a chuva. Você não poderá ficar lá muito tempo. Mais cedo do que imagina, você precisará voltar para casa. Sessões de psicoterapia podem ajudar no controle dessas vozes. Há quem aconselhe uma espécie de fuga da mente e busque refúgio no corpo, como a meditação e o exercício físico. É fácil se concentrar no corpo — principalmente quando ele está em movimento ou quando observamos o seu pulsar. Aliás, uma das marcas revigorantes — e até viciante — do esporte é a sensação de que tiramos uma folga do árduo exercício de construirmos a nós mesmos. Pode-se ler, ouvir música, ver um filme. É como se você obrigasse a mente a seguir as vozes de outras pessoas. Mas é uma solução temporária, assim que cessarem essas atividades, o ruído mental voltará com força redobrada. O desconforto não vai embora, continuará lá à sua espera.
Tente a filosofia
Então não há saída? Pode haver uma saída possível. E agora incorro aqui na parcialidade. Por defeito e por gosto, considero a filosofia o melhor dos remédios. Ela pode trazer para o diálogo interno, falas que guiam, consolam e harmonizam. Quando as vozes internas acenam com solidão e desespero, a filosofia pode trazer vozes de força e de esperança. Não a esperança passiva e simplória, mas a esperança como orientação do espírito.
A filosofia pode ainda nos mover para uma distância segura — nem que seja os dois metros em vigor. Em Além do Bem e do Mal, Nietzsche afirma que “se você olhar tempo demais para o interior do abismo, o abismo olha de volta para você”. O distanciamento proposto por Nietzsche também pode ser uma estratégia para que os vozes do desespero não deixem sequelas ou que não nos transformem em seres marcados e amargurados. “Aquele que combate monstros deve cuidar para que ele próprio não se torne um”.
Aos pedaços
É preciso que se diga que quanto mais conhecimento e experiência, mais aumentamos o nosso repertório de vozes de qualidade. É a nossa grande riqueza. Sócrates relatava que uma voz interior avisava-o quando ele estava prestes a cometer um erro. Joana d’Arc descreveu ter ouvido vozes divinas desde a infância, assim como Nietzsche, Sigmund Freud e muitos outros. A diversidade de vozes só passa a ser um problema quando inviabilizam o diálogo e a construção do pensamento coerente. Porque a verdade é que somos seres fragmentados. Não existe um eu unitário. Estamos todos aos pedaços tentando entender e harmonizar todas as nossas vozes. Às vezes, coisas más nos acontecem e contribuem para gerar mais fragmentos dissonantes, aumentando ainda mais o nosso caos interno. Mas também, coisas maravilhosas nos acontecem e unem os vários pedaços que estavam à deriva.
Apesar da força do mundo lá fora, é a nossa voz interna que decide o que nos convém, o que devemos respeitar e o que devermos evitar. É ela que exibe — quando estamos inteiros — todo o êxtase de viver. E é também ela que tem a sabedoria de escolher o lado da vida que faz sentido.
Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.
*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.
Os comentários são exclusivos para assinantes da Vida Simples.
Já é assinante? Faça login