Por que as teorias sobre o amor não funcionam na prática?
A fórmula para o amor bem-sucedido e o “felizes para sempre” escapa-nos. Na teoria é tudo lindo, porém, quando passamos à prática, tudo se complica. Será que sabemos mesmo o que é amar?
A fórmula para o amor bem-sucedido e o “felizes para sempre” escapa-nos. Na teoria é tudo lindo, porém, quando passamos à prática, tudo se complica. Será que sabemos mesmo o que é amar?
Diz-se que o amor romântico é visto com indiferença pela filosofia. É banal demais para ser captado pelo seu radar. Não é verdade. O amor romântico é o tema central de todos os grandes dramas humanos e a filosofia ocupa-se deles desde os seus primórdios. Quase todos os pensadores debruçaram-se sobre o tema. O que contribui para essa falsa noção de trivialidade, talvez seja a falta de consensos.
A obra O Banquete, de Platão, traz um resumo de várias definições do amor, mostrando que já em meados do ano de 330 a.C. não havia acordo sobre o que é o tal “fogo que arde sem se ver”. Apesar da falta de respostas, O Banquete continua a ser o livro mais conhecido — e também o mais lido — de Platão. Muito mais do que A República, considerada por especialistas como a obra maior de Platão. Talvez um indicador da primazia do amor diante da filosofia.
Do que falamos quando falamos de amor?
Mesmo de posse de O Banquete, as perguntas continuam a ser feitas. Seria o amor romântico um anseio íntimo da nossa humanidade? O amor romântico seria a máxima felicidade possível ou uma fonte de extrema angústia? Ou seria um truque da biologia para nos induzir a procriar? Ele leva à morte e à danação como querem escritores e poetas? O amor traz significado e propósito à vida ou é um paliativo que usamos para escapar às nossas vidas solitárias e difíceis?
“Amar é sofrer” como quer a sabedoria popular? Ou é tudo isso ao mesmo tempo? A professora de filosofia Skye Cleary fez um levantamento das teorias sobre o amor romântico ao longo da história do pensamento. Todo essa pesquisa está no livro Existentialism & Romantic Love e o único consenso que ela encontrou foi a capacidade infinita que a filosofia tem para pensar sobre o assunto.
Má onda
É preciso que se diga que há um grande número de teorias desabonadoras. Arthur Schopenhauer provocou um terremoto na filosofia da consciência quando apontou as razões inconscientes e biológicas do amor. O alemão antecipou-se a Darwin e — em quase meio século — à psicanálise de Freud . Para ele, o amor romântico é uma forma tortuosa que a natureza engendrou para nos induzir à procriação.
Diante da compreensão dessa condição fraudulenta do amor romântico, mais a convicção de que a vida não valia a pena, Schopenhauer sugeriu uma única saída honrosa para esses dois grandes enganos: desistir da reprodução. A ideia era tentar evitar as agruras dos jogos do amor e, ao mesmo tempo, extinguir a vida humana de forma lenta e indolor. Numa única e pequena atitude, dois ganhos gigantes. Eliminava-se o sofrimento causado pelo amor e o homem desapareceria da face da terra sem traumas, sem dramas, sem violência. Quase que alegremente.
Sou contra, mas…
Não que o irascível alemão fosse indiferente à prática do amor. Pelo contrário, para ele o amor romântico nada tinha de banal. Tratava-se de um sentimento avassalador, capaz de tomar conta da nossa vida e de todos os momentos de nosso dia. Ciente disso, Schopenhauer não tinha a pretensão de achar que conseguiríamos excluir o amor, queria apenas consolar os corações partidos. “Você não sofre porque é um romântico incurável, sofre porque é um escravo do impulso da vida”, diria ele. Não devemos nos culpar pelo desespero e obsessão que nos acomete quando amamos e não somos correspondidos. Nada podemos fazer porque trata-se do nosso mais profundo inconsciente, quem está no comando é a sobrevivência da espécie. A biologia é mais forte que a razão.
Porém, o que Schopenhauer queria deixar claro é que é um erro pensar que a felicidade tem algo a ver com isso. Para ele, quando o amor é consumado, somos devolvidos às nossas existências atormentadas. Só depois do encantamento inicial — com crianças correndo pelo quintal ou não — damo-nos conta de que fomos enganados. E daí, ou vem o divórcio ou passamos a fazer as refeições num silêncio hostil. Schopenhauer não queria nos deixar deprimidos, mas nos libertar das expectativas que podem gerar frustrações. Paradoxalmente, às vezes, os pensadores mais pessimistas podem ser os que mais no oferecem consolo.
A vida real…
Quem me acompanha sabe da minha crença de que a filosofia deve ser vivida. Então, passo ao resultado da filosofia de Schopenhauer praticado por ele mesmo: apesar de toda a sua genialidade e conhecimento, ele não conseguiu se livrar do sofrimento do amor romântico. Mesmo sendo um defensor convicto do “não casamento/não filhos” teve muitos amores românticos e consumiu-se em sofrimento — inclusive nas dores agudas do amor não correspondido. Não quero desanimar, mas se nem Schopenhauer conseguiu escapar, resta-nos pouca esperança.
Faça o que eu digo, não o que eu faço
Seria o amor romântico uma forma de dar sentido às nossas vidas? Simone de Beauvoir acreditava que sim. Para a filósofa francesa o amor é a busca de parceira para agregar significado à vida. A sua preocupação não era especular as razões do amor. Ela estava interessada em amar melhor, o que ela chamava de “amar autenticamente”. O foco, a posse e a dependência do outro eram vetados, pois conduziam ao tédio e aos jogos de poder.
A proposta era uma quase amizade. Os amantes deveriam se apoiar mutuamente para descobrirem a si mesmos, para caminharem além de si mesmos e, juntos, enriquecerem suas vidas e o mundo. Simone praticou esse modelo no seu relacionamento com Jean-Paul Sartre. Uma relação aberta, colaborativa, sem apego e sem dependência. Nunca coabitaram, mas permaneceram juntos até o fim.
A vida em carne e osso
Bem… vamos à vida real da ilustre francesa. E eis o que veio à tona depois de sua morte: Beauvoir sofria — segundo amigos próximos — com esse modelo de relação. E mais: mergulhou de cabeça no amor romântico. A filósofa amou perdidamente o escritor norte-americano Nelson Algren — como comprovam centenas de cartas apaixonadas. A romântica promessa “eu serei sua para sempre”, encontrada em uma das suas cartas, foi motivo de susto na França. Não pelo amante, já que a infidelidade fazia parte do pacto da relação com Sartre, mas por ela amar exatamente como a mais apegada das mulheres.
Ao mesmo tempo que Beauvoir escrevia o “O Segundo Sexo” — um tratado sobre a necessidade da emancipação da mulher — Simone escrevia a Algren que queria cozinhar para ele, servi-lo, mimá-lo. “Sinto imensamente sua falta”.
Proteção e abrigo
Bertrand Russell sugeriu que amamos como um artifício para escaparmos à solidão. Uma forma de saciar os nossos desejos físicos e psicológicos, quase como uma defesa. Por habitarmos um mundo frio e cruel, tentamos construir carapaças duras para nos protegermos. E a intimidade e o deleite do amor fazem parte dessa construção. O amor ajuda-nos a ultrapassar o nosso medo do mundo e faz-nos participar mais intensamente na vida. Russel também concordava com Schopenhauer, mas com lirismo: “somos projetados para procriar. Mas sem o êxtase do amor apaixonado, o sexo não seria satisfatório”.
O filósofo britânico na prática? Tudo indica que a solidão de Russel exigia doses cavalares de amor para aplacá-la. Na juventude foi acusado criminalmente de lascívia. Casou quatro vezes e teve inúmeras amantes. E a sua crença de que um amor é o refrigério para encarar a crueldade da vida foi praticada até o fim. Aos 88 anos, Russel foi preso por desobediência civil. A sua quarta esposa, Edith Finch — coautora do delito e também da condenação — foi a sua companheira de cárcere.
Mito da alma gêmea
Para fecharmos, voltamos ao O Banquete. Nele, o discurso mais sábio — como em toda obra de Platão — é colocado na boca de Sócrates (lembrando que Sócrates nunca escreveu nada. Platão dedicou-se a divulgar o pensamento do seu mestre). Entretanto, não foi o discurso de Sócrates que ficou para a posteridade, mas sim o do dramaturgo de comédias, Aristófanes, com o seu o mito da alma gêmea.
Este conta que na sua origem, os humanos eram criaturas esféricas, com quatro braços, quatro pernas e duas caras (a descrição é grotesca e pormenorizada). Um dia desafiaram Zeus e este, com a ajuda de Apolo, cortou os humanos ao meio e lançou-os à terra. Desde então, cada pessoa sente a falta de sua metade original e parte para buscá-la para voltar a se sentir inteira outra vez. A ideia de que amamos para nos tornamos completos é uma das crenças mais disseminadas no mundo, principalmente depois do romantismo.
A verdade…
Bem… Só compreendemos verdadeiramente uma obra dentro do seu devido contexto. Primeiro ponto: o mito da alma gêmea não existe na mitologia grega, foi inventado por Platão para ridicularizar Aristófanes. Platão queria se vingar do dramaturgo por este ridicularizar Sócrates em suas peças. Eis um caso clássico do tiro que saiu pela culatra. Um mito com contornos ridículos e rocambolescos — talvez uma tentativa de retratar um dramaturgo cômico e bêbado — ganhou notoriedade e caiu no gosto do mundo, ao ponto de ser citado como parte do pensamento de Platão: “O amor torna-nos completos outra vez”, assinado: Platão.
Se o amor romântico tem algum propósito, nem a ciência, nem a psicologia, nem a filosofia descobriram ainda. Mesmo que talvez nunca saibamos porque nos apaixonamos, sabemos que o amor é doloroso e sublime; devastador e magnânimo. Faz-nos cair e faz-nos levantar. Leva-nos ao submundo da dor, mas também nos faz voar. Traz salvação e danação; loucura e tragédia. Faz com que nos percamos e também nos achemos.
E mesmo com o olho no mau agouro dos casais da literatura e seus fins trágicos — Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Anna Karenina e Conde Vronski — seguimos amando. Mesmo com a consciência de que tudo pode dar errado, do risco certo do coração aos pedaços. Ainda assim só lamentamos por aqueles que tem pouca capacidade de amar, porque queremos amar. E queremos amar perdidamente.
Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.
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