O viés perigoso do autocuidado
O olhar precisa ser pra dentro, e se cuidar e ficar vivo é essencial, mas sem perder o fogo interno que faz mudar as coisas
O olhar precisa ser pra dentro, e se cuidar e ficar vivo é essencial, mas sem perder o fogo interno que faz mudar as coisas
Acho que podemos concordar que, ao falar de autocuidado, estamos basicamente falando de suprir nossas próprias necessidades. Sermos mais próximos de nós mesmos para conseguirmos viver um pouco melhor. Ter mais saúde física e mental, nos respeitando mais, trazendo mais potência pras nossas vidas.
A pegadinha que mora nesse conceito é que não conseguiremos suprir todas as nossas necessidades sozinhos. Grande parte das nossas necessidades emocionais e físicas dependem do outro, do social, de uma estrutura para serem sanadas a contento. O cérebro é um órgão social, a interdependência é um dos pilares da nossa sobrevivência, mas fomos acostumados a entender que é “cada um por si”, um tanto por conta dos padrões infantis que internalizamos, outro tanto por conta do liberalismo que domina grande parte do mundo.
Venho pensando muito nisso. O conceito de autocuidado não só foi descolado do social, como também foi cooptado pelo sistema econômico, quando o transformou em consumismo: “se cuide, fique linda com o produto X e Y, ou frequentando o local Z”. É o cuidado sendo entendido como perseguição da beleza padronizada, da moda da vez, do novo hype, afinal “nós merecemos”.
Definição do autocuidado
Nesse sentido, o conceito de autocuidado também se transforma em autoindulgência, quando descolado desse conceito de cuidado social. Os bares e praias lotadas no meio de uma pandemia global exemplificam claramente isso. A estratégia “tomar chopp para ver os amigos e se divertir” que supre as necessidades pessoais de contato social e leveza, sobrepuja o bem estar social, e exatamente por isso, não é uma boa estratégia para suprir necessidades tão básicas, tão humanas. Se o autocuidado não fosse entendido como autoindulgência, a estratégia para suprir estas necessidades talvez fosse outra, menos danosa às outras pessoas e ao mundo.
Quando voltamos à definição de autocuidado como estarmos atentos às nossas próprias necessidades, é essencial considerar o lado social e, principalmente, estrutural da nossa própria vida.
Pensando em algumas frases básicas do discurso do autocuidado, não há problema algum quando, por exemplo, dizemos que as mulheres precisam “deixar alguns pratinhos cair”, que não dá pra fazer tudo, que precisamos ser menos perfeccionistas. Mas fica descolado da realidade estrutural quando não pontuamos que, pra grande parte destas mulheres, “deixar um pratinho cair” sem que haja alguém pra pegá-los no ar, significa que uma criança ficará sem comer, sem cuidado, sem atenção, ou que essa mesma mulher pode ser demitida do trabalho de que tanto depende. Que “deixar alguns pratinhos caírem”, em casa, pode não ser o suficiente pra essa pessoa conseguir viver melhor, porque grande parte da carga material e mental da família e da casa ainda será dela, simplesmente por ser mulher.
E, pior ainda: ela será julgada por deixar esses pratinhos caírem. Afinal, pela lógica do capitalismo neoliberal que precisa do nosso trabalho não remunerado, uma mulher de verdade se sacrifica para cuidar dos seus e da casa, certo?
Adaptações
Não há problema no discurso de que é preciso parar, respirar, dar um tempo da correria e da loucura, mas não sem entender que algumas pessoas simplesmente não conseguem parar, só param quando adoecem, porque se param, sua família não come. E que o estado tem o dever de garantir uma vida digna não só se essa pessoa for obrigada a parar – para que ela continue comendo, vestindo, tendo um bom teto, creche para sua criança, uma renda- mas principalmente para que ela não seja obrigada a parar por conta da negligência social e política que a adoece.
Acho ótimo que no discurso do autocuidado falemos da busca do leve, da beleza e do idílico, mas não sem entender que moramos num país dominado por um projeto de poder que não permite que as pessoas tenham um minuto de paz. Que banaliza a pandemia e suas mortes, que promove a morte de pessoas negras e pobres, que banaliza violência feminicida, homofóbica e suas variações. Banhar-se ouvindo uma música relaxante e se blindar das notícias por um tempo garante que estaremos mais ”leves” para continuar vivendo nessa loucura, ou pode também abrandar nossa energia de indignação para combater o que está causando a falta da leveza? Nos adaptar a ela, basicamente.
No discurso do autocuidado, dizemos que é importante nos dar amor e nos sentirmos merecedoras de amor para poder recebê-lo, mas esvaziamos o sentido de “receber” quando não pontuamos que há pessoas que talvez só cheguem a conhecer o amor próprio mesmo, não o amor romântico – aquele que traria a chance de cuidado mútuo – porque sua cor e seu tipo de corpo as faz menos dignas dele, nesse mundo racista, gordofóbico e capacitista onde vivemos.
Olhar interno
Veja, eu entendo que precisamos fazer o que dá, o possível, e eu não pararei de fazê-lo, na esfera pessoal. Mas é imperativo entender que o pessoal não está descolado da estrutura, para que não abrandemos nossa indignação para mudar essa estrutura. Precisamos estar indignados.
As perguntas que pairam sob a minha cabeça: quem cuida de quem cuida? Estaríamos reforçando a atuação desse sistema opressor quando incentivamos a autorresponsabilidade das pessoas pelas suas necessidades, sem colocar foco em que algumas dessas necessidades não serão atendidas só por elas mesmas? O incentivo do cuidado pessoal é válido e é necessário, desde que não desconsidere o motivo estrutural das dificuldades em se auto cuidar. Isso seria equivalente à uma meritocracia do auto cuidado.
O olhar precisa ser pra dentro, e se cuidar e ficar vivo é essencial, mas sem perder o fogo interno que faz mudar as coisas. Esse, não podemos deixar banho relaxante nenhum apagar.
Thais Basile é mãe da Lorena, palestrante e consultora em inteligência emocional e educação parental, eterna estudante. Apaixonada por relações humanas e por tudo que a infância tem a ensinar. Compartilha um saber para uma educação mais respeitosa no @educacaoparaapaz. Escreve nesta coluna mensalmente.
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