Silêncio, por favor
No meio da tempestade de ruídos, ainda temos o silêncio como o nosso último abrigo. Ele cura, conforta e nos protege do vazio existencial
No meio da tempestade de ruídos, ainda temos o silêncio como o nosso último abrigo. Ele cura, conforta e nos protege do vazio existencial
O ambiente é tenso. Há muitas vozes, sons artificiais, timbres monótonos, ruídos irritantes. Há barulhos e alertas. Também há o estrondo das redes sociais. Estamos imersos no caos sonoro. E mesmo quando procuramos lugares “silenciosos”, levamos o barulho conosco. Aliás, quem hoje sai de casa sem celular? Quem caminha no parque sem fones de ouvido?
Se acaso você se entristeceu com esse cenário, você pode estar pouco acompanhado. Há um contingente enorme de pessoas que prefere assim. Para esses o silêncio não é fácil. Precisam da confusão e do barulho, precisam falar e ouvir permanentemente, são prisioneiros do ruído físico e mental. E quem não aprecia esse cenário, está na contramão. Tudo evolui no sentido contrário ao silêncio. Como se não bastasse o acesso fácil a todas as músicas do mundo, agora há os podcasts. A introspecção e a quietude necessária para ler um livro está perdendo terreno para os audiobooks. Hoje o silêncio é cada vez mais raro, uma espécie de luxo.
Casa no campo
É verdade que o gosto pelo ruído vem da nossa capacidade de adaptação. Afinal, a paz da vida no campo ou de uma casa isolada de vizinhos por um grande jardim é um privilégio para poucos. Porém, a outra razão — mais profunda — é que o silêncio assusta. O apelo poético para o encontro consigo mesmo, só acontece no silêncio. A quietude exibe a realidade como ela é e, pior, dá abertura para o encontro temido. Há quem deliberadamente fuja dele. O silêncio revela os nossos vazios e medos, expõe-nos ao desconforto e à dor. E, finalmente, há o medo de sermos sugados pelo nosso próprio buraco negro.
Se o silêncio faz com que venham à tona frustrações e tristezas, dúvidas e angústias, qual é a saída: a fuga. Quando estamos num evento desagradável — festa, jantar ou congresso — evadir-se é uma saída estratégica muito inteligente. Porém, a fuga de nós mesmos é uma suspensão da vida. Foge-se daquilo que nos esmaga, mas também da oportunidade de lidar com eles e — não menos pior — foge-se também da nossa fonte de poder. Quando renunciamos ao encontro interior, não fugimos apenas dos nossos medos e fracassos. Fugimos também do contato com a nossa história, nosso projeto interno, com o que nos realiza como pessoas, com o que nos encanta. Foge-se também dos nossos refinadíssimos dons humanos, como o conhecimento intuitivo — às vezes, mais eficiente do que o nosso próprio conhecimento racional.
Esqueça o positivo
Eu não me canso de alertar para os males do excesso do pensamento positivo — e vou fazê-lo mais uma vez, certamente. Essa fuga é muito estimulada pela crença de que a vida tem que ser um eterno carrossel de momentos felizes. Há uma fuga em massa para qualquer desconforto e, pior, qualquer sinal de desconforto. O desconforto dos nossos embates internos mais do que necessários, são parte do que somos, nos constitui. É a partir deles que vem o aprendizado de quem somos. E note: não é aprender a apreciar a vida apesar das dificuldades. A grande lição é interiorizar que elas são parte da vida. Não existe vida sem dificuldades.
O aprendizado da vida só é consolidado no silêncio das nossos encontros interiores. É por isso que os tempos de overdose de informação e estímulos, são também tempos de vazio existencial. Somos solicitados a ação, mas o nosso modo de vida não dá o tempo e o espaço que precisamos para analisar as nossas emoções e fazer as necessárias pontes de sentido com o nosso projeto interno. Precisamos do exercício de pensar os sentimentos e sentir os pensamentos. É no silêncio que aprendemos a modular emoções como a alegria, medo, tristeza, raiva.
Danos para a saúde
Porém, os seus males não ficam apenas ao nível psíquico. Estudos indicam que uma exposição continuada a níveis sonoros entre os 50 e os 55 decibéis – o equivalente ao barulho do trânsito – pode acelerar os batimentos cardíacos, aumentar a produção de cortisol (a hormona do stress) e afetar a tensão arterial. Ambiente com muitas pessoas falando ao mesmo tempo faz o nível de estresse subir em flecha. O silêncio, na contramão, reduz a ansiedade, fortalece a memória, a saúde cardiovascular, melhora a qualidade do sono. Os neurocientistas confirmam a função terapêutica do silêncio. Ele pode ser um antídoto contra a doença de Alzheimer e a depressão, por exemplo.
A cura
Se você percebeu a necessidade e quer recuperar o tempo perdido, pode fazer uma terapia de choque, com os “retiros de silêncio”. A proposta é vivenciar o silêncio do corpo e da mente, devidamente guiado por profissionais. Mas se você considera assustador o mergulho em apneia de um retiro, pode iniciar hoje mesmo uma desintoxicação do barulho, introduzindo aos poucos momentos de silêncio no seu dia a dia.
Cinco minutos de silêncio
Mesmo para os não iniciados na prática da meditação, é possível se beneficiar de cinco minutos de quietude por dia. Assim que acordar — mas antes de ligar o celular — sente-se num canto da sua casa, respire lentamente e concentra-se na percepção do seu corpo.
Cultive-se!
Depois de se habituar aos cinco minutos diários, pelo menos uma vez por semana, reserve um período para atividades silenciosas, como arrumar gavetas, por exemplo. Deixe o seu pensamento livre. Você pode se concentrar nas peças que manuseia, no espaço ao redor ou simplesmente observe os ruídos a sua volta. A ideia é a entrega silenciosa à tarefa.
Silêncio à mesa
Incorpore o silêncio em pelo menos algumas refeições. A ideia é desfrutar da experiência em família, trocar a conversa pelo silêncio partilhado. Às vezes, na dispersão, alguns nem sequer percebem os sabores que tinham no prato. O monge beneditino Anselm Grun, autor do livro Falar e Silenciar, afirma que nos seus seminários de silêncio, os participantes sentem um grande alívio por não terem que falar durante as refeições. Percebem que, muitas vezes, falam apenas para evitar o silêncio e a atmosfera incômoda. No fim do evento, os participantes sentem um vínculo muito mais íntimo do que se tivessem conversado o tempo inteiro.
Proteja-se com silêncio
Não podemos eliminar os barulhos. Mas podemos minimizá-los ou reduzir o tempo de exposição a eles. Não precisamos ter sempre o rádio ou a televisão ligados, podemos abandonar ambientes muito ruidosos. Os barulhos, mesmo que você tenha se habituado a eles, são danosos. Tornam-nos reativos e agressivos e fragilizam o nosso sistema imunitário.
Escuta atenciosa
Experimente caminhar no parque ou fazer exercícios sem música. A ideia é escutar a vida, um exercício de atenção plena. Preste atenção ao som dos pássaros, do vento, dos seus passos, do seu batimento cardíaco.
E os benefícios não ficam por aqui. O silêncio faz uma limpeza na alma. Varre o pó que as preocupações e os problemas do dia a dia depositam sobre ela. Impulsionador do autoconhecimento, ele cura hábitos compulsivos e manias. É por isso que o filósofo Kierkegaard recomenda “banha tua alma no silêncio”. E mais do que proporcionar um encontro com nós mesmos, mais do que estender o corpo no aqui-agora, o silêncio é um intensificador da vida. Porque é a partir dele que emerge o nosso eu verdadeiro; as palavras mais importantes são aquelas que nascem do mais profundo silêncio.
Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.
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