O tempo das coisas está desalinhado com o tempo das pessoas
Precisamos aprender a reposicionar urgências para voltar a funcionar na lógica real da vida e de seus chamados inadiáveis, entendendo que somos pessoas e não coisas
Mamãe fez uma cirurgia. Catarata. É algo simples. Mas entre chegar ao centro cirúrgico e ter alta são cerca de três horas.
A sala de espera era grande. Havia muita gente aguardando o retorno de alguém da cirurgia. Da poltrona, podia ver algumas pessoas trabalhando, muitas entretidas com o celular e algumas conversando. Entretanto, vez ou outra, alguém fazia uma reunião online.
Esse era o caso de um homem de cerca de 40 anos, cabelos curtos e castanhos, camisa polo, calça jeans e notebook no colo.
Mesmo sem querer, enfim, acabei participando da conversa, por conta da proximidade. Parecia um plano para lançar uma candidatura para alguma organização.
Em um determinado momento, a recepcionista anunciou em tom alto: “acompanhante da senhora xis”. Silêncio, todavia, seguido de uma nova tentativa, agora como um grito. “Acompanhante da senhora xis!!!!!!”.
Foi quando o homem da reunião online respondeu aos berros: “Sou eu, já vou!!!!”. Volta para a reunião. Silêncio na tela. E segue, num tom de quem foi perturbado por alguma inconveniência: “Retorno em no máximo meia hora. Vou resolver isso e já volto”.
Quem controla o tempo são as pessoas
“Isso” era a pessoa que ele estava acompanhando. O homem fechou a tela do computador exasperado, enfiou-o na mochila e saiu irritado.
Pensei nele falando apressado com a senhora xis, forçando um ritmo rápido e difícil para quem acabou de fazer uma cirurgia nos olhos, chegando em casa e a largando no sofá porque precisava terminar a reunião sobre a formação da chapa.
Senhora xis está em um dia de fragilidade. Dia de aquietar. De entender que a gente não tem toda a força que supõe. Quebramos. Nosso corpo dá sinais de falhas.
Consertamos, mas o organismo não funciona na lógica do trabalho, e sim em um tempo que é só dele. Entretanto, aquilo que fazemos para sobreviver ganhou um peso maior do que viver.
Aprendendo a valorizar o ritmo das pessoas
Finalmente, cheguei em casa já de tardezinha. Preparei para mamãe um prato de comida, pinguei a medicação em seus olhos e a deixei deitada.
Estou, aos poucos, aprendendo a realinhar a lógica da vida em mim. As reuniões podem esperar, os textos, as obrigações. Mas as pessoas que amo, não.
Mamãe, naquele dia, precisava de uma mãe. Ela tinha a mim, sua filha.
Lidar com o cuidar não só da minha mãe, mas também do meu pai, tem me ajudado a reposicionar urgências.
A do momento é ser para eles o que sempre foram para mim. Amor.
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Conteúdo publicado originalmente na edição 273 da Vida Simples
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