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A solidão das pessoas LGBT
Solidão LGBT é resultado de preconceito e violência (Foto: Alexander Grey/Unsplash)
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Quando estava no final da vida, o engenheiro e inventor italiano Gu­glielmo Marconi, conhecido por seu trabalho pioneiro em transmissões de rádio a longas distâncias, desen­volveu a teoria das frequências eter­nas.

Ele acreditava que o som nun­ca morria — que seu tom tornava-se mais suave, então não conseguía­mos ouvi-lo, mas que com um dis­positivo apropriado ele poderia se tornar audível novamente. “Imagi­ne se pudéssemos ouvir Jesus fazen­do o Sermão da Montanha?”

O inventor morreu em 1937 e nunca chegou a criar sua máquina de detecção sonora. Mas como es­sa fantasia era interessante! Pense no tanto de diálogos incríveis, que marcaram a nossa história, e que se­ríamos capazes de ouvir.

Na verda­de, acho que até mesmo conversas pessoais valeria a pena escutar. Eu, por exemplo, adoraria ouvir as conversas que gays, lésbicas, bissexu­ais e transgêneros (LGBT) tiveram quando descobriram que sua orien­tação sexual ou identidade de gêne­ro era diferente daquela aceita co­mo normal na família ou na socie­dade em que eles foram criados.

A solidão de ser uma pessoa LGBT

A homofobia e a transfobia estão dis­seminadas por todos os cantos do mundo, em graus maiores ou meno­res. Para muitas pessoas LGBT, onde quer que elas estejam, há ao menos um denominador comum: a solidão ou o medo dela.

O medo de ser excluído, dis­criminado, de se sentir como uma pessoa inferior — o que leva ao iso­lamento e, às vezes, a traumas se­veros. Em alguns aspectos, a homo­fobia e a transfobia são diferentes da discriminação racial, na qual você se destaca da sociedade por causa da cor da sua pele, mas tem semelhan­ça com seus parentes e familiares.

O mundo exterior pode ser hostil, po­rém você pode encontrar refúgio em casa. Ser gay num ambiente em que só se aceita a hete­rossexualidade é difícil, porque vo­cê provavelmente é diferente das ou­tras pessoas da sua família e da maioria da sociedade. Você se sente segu­ro o suficiente para contar isso aos seus pais e irmãos?

Quando ser LGBT é crime

Sou integrante do Human Rights Watch (HRW), e entrevistamos muitos LGBT sobre o dilema de expressar sua orientação sexual ou identidade de gênero ou se manter em segredo.

Ser LGBT não é uma escolha, mas esconder uma parte vital da sua identidade é. Ficar no armário pode ser uma saída segura num ambiente hostil, mas também pode levar a sérias consequências negativas, incluindo ansiedade, medo, problemas de saúde e uma sensação profunda de solidão.

No relatório recente Eu Preciso Ir Embora para Ser Eu, sobre sete países do leste do Caribe nos quais a conduta homossexual é crimina­lizada, entrevistamos pessoas LGBT sobre os efeitos das chamadas “leis de sodomia”, que proíbem a condu­ta homossexual.

Essas leis invadem a privacidade e criam desigualdade. Elas degradam a dignidade das pes­soas declarando seus sentimentos mais íntimos como ilegais ou anti­naturais. E podem ser usadas pa­ra destruir vidas e carreiras. Elas levam as pessoas à obscuridade para viverem invisíveis e com medo.

Relatos de quem sofre homofobia em casa

Deixe que eu compartilhe algu­mas das vozes de pessoas que en­trevistamos. Toby, um homem gay de 38 anos de Santa Lúcia, falou so­bre sua experiência de extrema ex­clusão em casa: “Meu pai descobriu que sou gay quando alguém contou para ele. Quando minha mãe tam­bém ficou sabendo, não falou comi­go por dois anos. Eu só podia usar um prato, uma colher, e não permi­tiam que eu encostasse em mais na­da. Era como se eu tivesse uma do­ença contagiosa, eles se distancia­ram de mim. Passei dois anos numa casa onde ninguém falava comigo. Eu não tinha a quem recorrer e esta­va sempre sozinho”.

Outro exemplo é o de Peter, um homem gay de Do­minica. “Minha família não me acei­ta. Fui criado com os valores fami­liares sendo a coisa mais importan­te. Esperavam que eu fosse alguém que eu não era. Eu ia contra aqui­lo que a família queria. Eu tinha 16 anos quando cortei meus pulsos pela primeira vez; eu chorava e implora­va que Deus me mudasse, mas ficou claro que isso não iria acontecer…”

Esses são apenas alguns exem­plos de histórias colhidas em países do leste do Caribe. Mas, mesmo em lugares que não proíbem a intimida­de sexual com o mesmo sexo, pesso­as LGBT podem experimentar sen­timentos de completa solidão.

Em 2017, o escritório do ombudsman dos Direitos Humanos Nacionais recebeu 1720 reclamações de vio­lência, discriminação e outros abu­sos contra lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros. A maior parte envol­via discriminação, sendo mais da metade relacionada a violência psi­cológica e um terço incluindo tam­bém violência física.

Ah, se pudéssemos intervir na LGBTfobia…

Voltando a Marconi e sua má­quina imaginária de ouvir sons. Ima­gine se pudéssemos ouvir todas es­sas conversas de pessoas que assu­miram aquilo que são.

Indo além: e se inventássemos um dispositivo que nos permitisse participar des­sas conversas? Assim, quando um pai falasse para sua filha lésbica: “Eu vou expulsá-la de casa”, poderíamos interferir. E, então, dizer: “Ei, pare, isso não é certo”. Não seria maravi­lhoso se pudéssemos mudar a ne­gatividade nessas conversas con­vencendo o pai a amar sua filha por quem ela é, em vez de odiá-la por não ser quem ele quer que ela seja?

É claro que essa invenção é uma ilusão. E talvez devamos ser gratos por isso, porque ela seria mal utiliza­da. Frente à realidade, meus colegas no HRW estão reunindo fatos sobre a homofobia e a transfobia através de pesquisas rigorosas.

Apresenta­mos esses fatos a governos e a outros agentes combinados com análises legais e recomendações sobre como resolver os abusos aos direitos humanos que encontramos.

Às ve­zes somos bem-sucedidos, mas tor­nar o mundo um lugar melhor é uma batalha de longo prazo. Entende­mos que repelir as leis discrimina­tórias anti-LGBT é uma coisa, mas afetar o coração e a mente das pes­soas para criar uma mudança social é outra.

Compartilhar pode nos livrar da solidão LGBT

Recentemente, publicamos uma série de vídeos voltados para pessoas LGBT no Oriente Médio e na África do Norte, intitulada No Longer Alone (“Não Mais Sozinho”). Compar­tilhar essas mensa­gens nas redes so­ciais pode ajudar a levantar a nuvem de solidão e isolamen­to.

Ativistas corajo­sos desses países le­vantam suas vozes em árabe e compar­tilham sentimentos de medo e solidão, mas também dão mensagens de espe­rança: “Se eles não gostam do que você é, eles estão errados. Você não está sozinho, nós estamos com vo­cê”.

E isso vale para muitas outras si­tuações na nossa vida. Às vezes, nos sentimos sozinhos com nosso sofri­mento e não compartilhamos, não queremos nos expor. Mas isso só le­va a mais solidão.

Compartilhar, di­vidir seus sentimentos mais pro­fundos é um caminho para se sentir mais livre na vida. Melhor, você po­de descobrir que não está sozinho.

Sobre a série Dilemas

Série Dilemas é uma parceria entre a revista Vida Simples e a The School of Life e traz artigos assinados por professores da chamada “Escola da Vida”. A série tem como objetivo nos ajudar a entender nossos medos mais frequentes, angústias cotidianas e dificuldades para lidar com os percalços da vida.

The School of Life explora questões fundamentais da vida em torno de temas como trabalho, amor, sociedade, família, cultura e autoconhecimento. Foi fundada em Londres, em 2008, e chegou por aqui em 2013. Atualmente, há aulas regulares em São Paulo. Para saber mais: theschooloflife.com/saopaulo


BORIS DITTRICH é diretor do Humans Right Watch. É líder mundial da organização pelos Direitos lgbt, na qual advoga falando na onu e também com ativistas, jornalistas, vítimas e stakeholders. Foi responsável por convencer o Vaticano a falar publicamente sobre os diretos dos homossexuais.


Mais da Série Dilemas
– Como é possível lidar com o fracasso?
– Insegurança: Como ter mais confiança em si mesmo
– Como encontrar em nós nossa melhor companhia?


Conteúdo publicado originalmente na Edição 197 da Vida Simples

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