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Não é autossabotagem: saiba por que desistimos de nossas metas
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O primeiro mês do ano é quase sempre marcado por um senso renovado de possibilidades e um forte impulso para a mudança. É nesse período que muitos de nós fazemos resoluções audaciosas para uma vida mais saudável, feliz e significativa. Essa busca, inicialmente impulsionada por um desejo legítimo de transformação, rapidamente se confronta com a dura realidade do cotidiano. Mas, por que é tão difícil implementar novos hábitos? Estamos fazendo um autossabotagem? Por que os padrões são tão difíceis de mudar? E, afinal, por que é que ter motivação não basta?

A Sociedade do Burnout: falta de realismo e de suporte social e emocional

Uma das razões fundamentais para a falha precoce das nossas metas reside nas barreiras colocadas por um cérebro programado para poupar energia.

Mesmo quando a intenção de mudar é genuína, nossa psique tende a resistir a alterações significativas de padrões já existentes. O cérebro humano está equipado para poupar energia, percorrendo os circuitos neuronais pré-estabelecidos que levam a resultados conhecidos e previsíveis.

A zona de conforto, por mais limitante que seja, oferece uma sensação de segurança que a mente muitas vezes reluta em abandonar.

Mas creio que o problema não vive apenas num sistema de preservação de energia. Se assim fosse, raras seriam as pessoas a concluir alguma tarefa mais exigente para a qual se tenham proposto.

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Outro causador de medo

A verdade é que vivemos numa sociedade que favorece cada vez mais a performance. Sem olhar a meios e a custos para a saúde emocional. O mundo nos faz olhar para o sucesso como resultado de grandes transformações em curtos períodos. Essa lógica alimenta a ilusão de que a mudança é rápida e linear. E se apoia num discurso popular que promove ideias como “só não alcança quem não quer” ou “se você acreditar, consegue!”.

Baseando-se na premissa de que não existem limites ou que basta querer, as pessoas são por vezes levadas a estabelecer metas inatingíveis. Além disso, a pressão e as expetativas sociais podem tornar-se opressoras, especialmente quando as dificuldades surgem. É frequente experimentarmos sentimentos de inadequação por não fazermos melhor, por não irmos mais rápido ou mais longe. Ao ficarem recorrentemente distantes dos resultados desejados, as pessoas sentem-se péssimas não só com as suas vidas, mas especialmente consigo mesmas.

O mundo faz-nos promessas fáceis, para mudanças que – na maioria das vezes – são realmente difíceis. E ainda nos gera sentimentos de culpa, quando não atingimos os resultados desejados.

Acontece que a esta lógica de pseudo-responsabilização, escapa um fenômeno humano invisível: o trauma. Muitas vezes é ele que está por trás da nossa dificuldade em alcançar os nossos maiores sonhos. Vejamos como.

Uma força invisível chamada: trauma

Frequentemente o que nos impede de assumirmos um novo comportamento ou criarmos uma realidade diferente, não é a falta de querer ou poder. É o fato do nosso sistema nervoso poder estar preso numa resposta de luta/fuga/paralisação. Por incrível que pareça, algumas experiências emocionais intensas vividas no passado, podem proteger-nos dos nossos próprios desejos e objetivos.

Vamos a exemplos concretos: 

  • Queremos pedir um aumento ao nosso chefe, mas adiamos constantemente-lo, sem perceber que temos um bloqueio emocional que nos impede de nos sentirmos seguros diante de figuras de autoridade.
  • Queremos criar um negócio próprio, mas estamos há anos a comprar cursos, livros e a preparar mil e um planos complexos sem lançar nada. Enquanto nos distraímos com detalhes, não percebermos que esse perfeccionismo severo é resultado de um medo crônico de falhar.
  • Queremos finalmente começar a fazer exercício físico, perder peso e manter uma alimentação saudável e não conseguimos ser consistentes de maneira nenhuma. O esforço inglório esconde experiências do passado (como bullying), que podem ter criado associações negativas ao exercício. Além disso, o ganho de peso pode ser uma resposta inconsciente para criar uma barreira física, proporcionando uma sensação de segurança e controlo. Este mecanismo é frequente em vítimas de abuso ou até mesmo experiências consecutivas de humilhação.
  • Queremos superar a procrastinação e ser mais produtivos, mas adiamos cronicamente tarefas importantes…  Atrás de um comportamento aparentemente indisciplinado, pode estar uma enorme ansiedade de desempenho e aversão à falha. Esses sentimentos são comuns quando vivemos experiências de críticas ou punições na infância, desencadeando respostas de evitamento automáticas.

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Autossabotagem não existe!

Os nossos mecanismos de defesa são estratégias psicológicas desenvolvidas para lidar com experiências dolorosas, traumáticas ou ameaçadoras. Esses mecanismos, muitas vezes inconscientes, visam proteger-nos do sofrimento emocional e preservar uma sensação de equilíbrio psicológico. Isto significa que autossabotagem não existe. Pelo menos, não da forma que a costumamos ver.

Geralmente, quando falamos de autossabotagem, pensamos num ato perverso e deliberado que prejudica consecutivamente a nossa própria felicidade e sucesso. E isso não é realmente o que se passa. O nosso corpo não está a querer prejudicar-nos. Muito pelo contrário. O corpo pode optar por impedir ativamente o sucesso, não porque nos quer sabotar, mas proteger.

A autossabotagem reflete, portanto, um mecanismo de autopreservação.

Alguns exemplos de como ela pode acontecer:

Evitar riscos emocionais: A autossabotagem pode surgir como uma tentativa de evitar riscos emocionais associados ao sucesso. O medo do desconhecido, a incerteza sobre como a vida pode mudar e a ansiedade relacionada à responsabilidade adicional podem criar uma aversão inconsciente ao progresso. Ao se manter no status quo habitual, o indivíduo evita as complexidades emocionais que o sucesso pode desencadear.

Familiaridade com a dor conhecida: A ideia de permanecer em situações desconfortáveis, mas familiares, pode ser mais reconfortante do que se aventurar em território desconhecido, mesmo que promissor. A mente, muitas vezes, prefere o conhecido, mesmo que seja doloroso, em vez do desconhecido, com seus potenciais desafios.

Autopreservação através da autoimagem: A autossabotagem também pode ser uma forma de proteger a autoimagem do indivíduo. O sucesso e a mudança muitas vezes traz consigo expetativas e julgamentos externos, o que pode desencadear vulnerabilidades profundas. Ao evitá-los, o indivíduo preserva a imagem que tem de si, contra o medo do julgamento e da possível rejeição.

A ilusão do controle: A autossabotagem pode proporcionar uma ilusão de controlo em situações em que o indivíduo se sente impotente. Ao se sabotar, ele mantém a sensação de estar no comando, mesmo que isso signifique permanecer num estado de estagnação. Evitar a mudança pode servir como um mecanismo de enfrentamento face à incerteza e imprevisibilidade que ela gera.

Mudar de vida, um passo de cada vez

Compreendermos a autossabotagem como uma forma de autopreservação é crucial para criarmos uma base sólida para a mudança. Além disso, se queremos um ano (e uma vida) realmente novo, talvez tenhamos de olhar para as feridas do passado que nos fazem temer o futuro. Claro que o processo de descobrir e compreender esses mecanismos exige uma profunda autorreflexão. Em muitos casos, é realmente benéfico o auxílio de profissionais de saúde mental e emocional para nos ajudem a fazer essa travessia. No entanto, deixo algumas sugestões que contribuem para uma melhor relação com este processo interno:

Aumento de consciência emocional:

Práticas de presença plena e meditação são eficazes na construção da consciência emocional. Essas técnicas ajudam-nos a observar pensamentos sem julgamento, cultivando uma compreensão mais profunda das nossas motivações e emoções.

Exposição gradual ao desconforto:

Em algum momento teremos de contactar com a nossa zona de desconforto, mas podemos fazê-lo de maneira progressiva. Ao se expor gradativamente a situações desconfortáveis, tem a oportunidade de desmantelar padrões de evitamento e desenvolver habilidades para lidar com as emoções associadas ao desconforto. A exposição gradual permite a criação de novas associações mentais e emocionais, transformando o desconforto em oportunidade de crescimento pessoal.

Desenvolvimento pessoal e planejamento estratégico:

Estabelecer metas realistas e desenvolver um plano estratégico para alcançá-las é crucial. Perante algo que nos assusta ou desafia, temos a tendência ao evitamento e o que precisamos é precisamente do contrário. Antecipa a dificuldade, planeja, pratica e ajusta o plano para prevenir e remediar dificuldades.

Construção de redes de apoio:

A construção de redes de apoio social é uma peça fundamental na superação da autossabotagem. Compartilhar metas e desafios com amigos, familiares ou grupos de apoio pode fornecer um sistema de suporte emocional valioso. O apoio social não apenas oferece compreensão e encorajamento, mas também desafia padrões autodestrutivos. Lembre-se de buscar esse suporte em pessoas particulares. Nem todos terão a compaixão e validação necessárias a um processo humanizado.

Ao reconhecermos a natureza do fenômeno que nos faz desistir das nossas metas, abrimos caminho para uma abordagem mais compassiva diante da vida. Não é lutando contra a autossabotagem e forçando-nos a fazer o que todos fazem que conseguiremos melhores resultados. Pelo menos, não se quisermos preservar a nossa saúde integral. O melhor caminho para superar este mecanismo é olharmos para aquilo de que ele nos protege: nossas feridas. Enquanto não as processarmos, nosso corpo continuará a fazer aquilo para o qual for programado: garantir a nossa sobrevivência (e não a nossa felicidade).

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