Os perigos da convicção inabalável: excesso pode ser um risco
Reinaldo Polito explora a importância da convicção equilibrada: ela pode ser uma força que inspira, mas pode cegar se impedir outras perspectivas.
Fale com convicção! Seja determinado na defesa das suas teses! Mostre firmeza na exposição das suas ideias! Quem poderia contestar sugestões sensatas como essas? Aparentemente ninguém. Afinal, sem essas atitudes como um líder conseguiria incentivar seus liderados a arregaçar as mangas e enfrentar distintos desafios para que os objetivos pudessem ser atingidos?
Para ser respeitado e ter sucesso, algumas qualidades são tidas como fundamentais. O comportamento assertivo. A voz robusta, às vezes enérgica, ora com volume tonitruante, ora suave, em um ritmo que demonstra leveza, mas também segurança e confiança. O vocabulário medido e adaptado à capacidade de entendimento e ao gosto dos ouvintes, isento de palavras que exijam algum tipo de “tradução” para que sejam compreendidas, ou por serem excessivamente técnicas, ou por darem a impressão de terem sido garimpadas nas páginas pouco usadas de um dicionário. A postura firme, elegante, sem rigidez. O semblante arejado, disponível, descontraído, e ao mesmo tempo confiante e seguro.
Essa poderia, perfeitamente, ser a descrição de uma pessoa convicta de suas ideias e ideais, empunhando o estandarte e carregando uma legião de seguidores ao longo da sua jornada. Confiança, objetividade e obstinação por uma causa acompanham sua caminhada, e, concluída a tarefa, ainda que não mais esteja presente, seu exemplo fará com que os liderados continuem o percurso empenhados na busca de resultados que agora passaram a ser deles.
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Excesso de convicção pode ser um risco
Como a vida não caminha em linha reta, há, entretanto, outro lado a ser considerado. Poucos se dão conta de que o excesso de convicção pode representar riscos de desrespeitar as fronteiras da razoabilidade, da consciência de outras possibilidades. São aquelas linhas invisíveis, tênues, imperceptíveis que ao serem rompidas podem estabelecer a presença da arrogância, da prepotência, da presunção, e acabam por revelar um perfil que não agrega, não conquista, não cativa. A certeza cristalizada e ostentada pode nesse contexto, então, ser tomada como indicativo de desconsideração e até menosprezo.
A convicção de que suas ideias são incontestáveis acabam em certos casos por aprisionar a pessoa em seu próprio enredo e torná-la escrava de suas palavras. Ao não levar em conta a possibilidade de verdades que não sejam aquelas nas quais acredita, limita sua visão de mundo e se fecha em um verdadeiro labirinto sem saídas.
Um exemplo clássico da literatura
Shakespeare foi magistral ao demonstrar em “O Mercador de Veneza” o risco desse olhar ensimesmado, que não permite enxergar diferentes perspectivas. A conhecida história traz ensinamentos curiosos e peculiares.
Em sua obra, Bassânio estava apaixonado por Pórcia. Ela ostentava grande riqueza, pois era herdeira de vultosa fortuna. Por esse motivo também tinha aos seus pés inúmeros admiradores. Como pretendia conquistar o coração daquela mulher, Bassânio pediu um empréstimo ao seu amigo Antônio, um mercador de Veneza. A quantia elevada de três mil ducados permitiria que se aproximasse dela.
Antônio não possuía naquela época o valor solicitado. Ele estava na dependência da chegada de seus barcos ao porto da cidade. Mesmo assim, querendo ajudar o amigo, foi com ele até à casa do judeu Shylock pedir o empréstimo. Essa era uma atividade normal de Shylock, emprestar dinheiro a juros. Antônio, porém, se opunha a essa prática que contrariava sua maneira de pensar. E, como cristão caridoso, costumava censurar publicamente a atividade do judeu.
Shylock viu no pedido de seu desafeto uma boa oportunidade de se vingar dele. Redigiu um contrato, sem que pudessem perceber suas reais intenções. Dispôs-se a emprestar o dinheiro sem cobrar juros. Estipulou, todavia, uma condição: se o pagamento da dívida não fosse efetuado no prazo determinado, ele estaria autorizado a retirar do devedor uma libra de carne. E deixava claro que poderia escolher de qual parte do corpo. Com a certeza de que teria a quantia no prazo combinado, Antônio aceitou.
Infelizmente para ele, devido a contratempos, os barcos atrasaram e a dívida não foi quitada. Shylock, assim, não hesitou em entrar na justiça para fazer valer as cláusulas do contrato. Pórcia tomou conhecimento do ocorrido. Ciente de que Antônio estava naquela situação desesperadora por ter auxiliado seu amor, decidiu ir a Veneza e tentar salvá-lo.
Ela era parente de Belário, um renomado advogado. Aproveitando-se dessa ligação, disfarçou-se de advogado e foi até o tribunal munida de uma carta de recomendação ao Dodge para operar no caso. Antes de partir para a contenda, tentou um acordo conciliatório. Ofereceu ao credor três vezes mais o valor a que ele teria direito. Como o objetivo de Shylock não era o de receber a quantia, mas sim o de prejudicar Antônio, fazendo com que ele sofresse, recusou a oferta generosa. Não abriu mão de que a cláusula do contrato fosse cumprida. A lei protegia seus interesses.
Não tendo alternativa, Pórcia atuou no julgamento ainda sob o disfarce de advogado. Sem contestar, exigiu que o contrato fosse obedecido. Os diálogos que se seguem são dos mais instigantes da literatura mundial:
Pórcia – Uma libra de carne desse mercador te pertence. O tribunal te adjudica essa libra e a lei ordena que ela te seja dada.
Shylock – Corretíssimo, juiz!
Pórcia – E podes cortar-lhe essa carne do peito. O tribunal o autoriza e a lei o permite.
Shylock – Sapientíssimo juiz! Isto é que é uma sentença! Vamos, preparai-vos!
Pórcia – Espera um momento. Ainda não é tudo. Esta caução não te concede uma só gota de sangue. Os termos exatos são: “Uma libra de carne”. Toma, pois, o que te concede o documento; pega tua libra de carne. Mas, se ao cortá-la, por acaso, derramares uma só gota de sangue cristão, tuas terras, teus bens, segundo as leis de Veneza, serão confiscados em benefício do Estado de Veneza.
Ao saber que existia interpretação diversa que não havia considerado para aquele contrato, o judeu resolve aceitar o dinheiro que lhe propuseram como acordo. Porém, já não havia mais tempo, pois, em vista dos fatos apontados naquela circunstância, além de perder o valor que emprestara, teve seus bens confiscados por ter atentado contra a vida de um cristão.
Cuidado para não se tornar escravo das próprias palavras
Essa convicção, essa certeza de Shylock o cegou de tal forma que o impediu de enxergar outras possibilidades que estavam à frente de seus olhos.
Portanto, a convicção, pode e deve ser um atributo excepcional na vida de qualquer pessoa, mas ser levado por ela até o ponto de se tornar escravo das próprias palavras, entendendo que elas são a única maneira de vislumbrar a vida, é insensatez e imprudência.
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