Essa biblioteca na periferia de Campinas constrói sonhos
"Lugar de Fala" é uma biblioteca comunitária que nasceu na periferia de Campinas e hoje se tornou um exemplo de projeto que incentiva a trocas de saberes.
“Lugar de Fala”. Esse é o nome da charmosa e convidativa biblioteca na periferia de Campinas, localizada na comunidade Chico Amaral. Além de oferecer livros, também é um espaço de escuta e acolhimento dos moradores da região, um lugar dividido por linhas de trem e considerado uma área de risco.
A ideia de criar um espaço comunitário repleto de livros gratuitos para a população de Chico Amaral foi da jovem Majori Silva, que tem a leitura como sua companheira desde muito cedo. Seu pai, um pernambucano que veio até São Paulo em busca de trabalho, mesmo sem ler, criava suas próprias histórias e contava para a menina antes de dormir, uma maneira de driblar a ausência de escolaridade.
“Eu acho que, com esse hábito do meu pai, aos poucos foi me chamando a atenção para o mundo da leitura e dos livros”, conta Majori. A potência do livro surgiu mesmo quando a estudante passou a frequentar a escola, construindo uma relação com a leitura que, anos à frente, se tornaria um motor das transformações no pequeno bairro, que conta com 170 famílias.
Majori Silva durante a construção da biblioteca comunitária. Foto: Arquivo pessoal
Cruzando fronteiras
A leitura, para Majori, era tão importante que ela decidiu ir além. Deu início a um projeto de contação de histórias para crianças do bairro quando ainda era estudante da escola pública. Logo, surgiu uma oportunidade e a jovem inscreveu a iniciativa para um projeto da Universidade Harvard e, não deu outra, foi aprovado.
“A gente fez uma campanha de financiamento coletivo e quando eu voltei tinha sobrado dinheiro. Guardei ele e, na pandemia, começamos a comprar as coisas para a construção da biblioteca”. Depois de uma espécie de mentoria em Harvard e no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), Majori resolveu transformar os aprendizados em uma construção coletiva, um espaço comunitário onde todos – adultos e crianças – pudessem frequentar.
“É uma sorveteria?”, “um novo estabelecimento?”, as pessoas perguntavam. “Não, é uma biblioteca”, devolvia Majori. Surpresos, é claro, já que não é comum ter espaços assim no Chico Amaral, um lugar onde moram – majoritariamente – pessoas negras e de baixa renda.
O espaço foi construído, começou a ser frequentado pelos moradores e ganhou uma grande repercussão. Lugar de Fala também foi se tornando um espaço de escuta e acolhimento às dores e sofrimentos vividos pelo cotidiano da população.
“Para mim, eu acho que muita coisa aconteceu por causa da biblioteca, e acho que meus sonhos e objetivos ficaram mais claros quando estava funcionando“, explica Majori.
Estantes com livros na “Lugar de Fala”, a biblioteca criada por Majori. Foto: Arquivo pesssoal.
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Mudança de rota
A construção da biblioteca possibilitou uma série de mudanças no Chico Amaral. O pai de Majori, que antes criava histórias ficcionais para a filha por não saber ler, deu seus primeiros passos no mundo das letras depois que teve contato com uma série de livros sobre o cangaço, evento que aproximava o pai com suas origens no Nordeste.
Outra mudança aconteceu depois do contato de Majori com temáticas sociais e políticas, como o contato com a escritora e filósofa Djamila Ribeiro, que doou 1.000 livros da coleção Feminismos Plurais. Hoje, o acervo da biblioteca Lugar de Fala é de 2 mil exemplares, que podem ser emprestados gratuitamente ou lidos no local.
Majori, que cursava a graduação em Engenharia de Transportes na Unicamp (localizada a cerca de 12km da sua casa), decidiu mudar sua rota e foi aprovada no SiSU para cursar Ciências Sociais na Universidade Federal da Bahia, em Salvador. A escolha por uma cidade tão distante tem significado. Em 2018, o IBGE mostrou que o percentual de negros (pretos e pardos) em Salvador era de 81,1%. A cidade mais negra fora do continente africano.
Fachada da biblioteca “Lugar de Fala”. Foto: Arquivo pessoal
Estar lá, para Majori, é uma forma de se conectar com suas raízes, origens e potencialidades da cultura negra em Salvador. Mas, apesar dos elogios, a estudante, além do desejo de se tornar uma intelectual, pretende voltar para Campinas e dar prosseguimento às iniciativas de espaços comunitários de leitura. “Eu quero muito voltar de Salvador para poder mergulhar mais na biblioteca e trazer um pouco disso que eu estou vivenciando lá”, explica.
A proposta da jovem, agora, é possibilitar com que cada comunidade e região periférica de Campinas tenha pelo menos uma biblioteca comunitária, não só para o acesso à leitura, mas para o fortalecimento do bairro e das reivindicações sociais dos moradores.
“Quem está escutando a gente, quem está escutando sobre nossos sonhos? E acho que dentro da biblioteca nós conseguimos cultivar esses sonhos, através dos livros, das conversas, das contações de histórias”, conclui Majori.
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