Conheça o slow medicine, um novo ideal de atendimento na medicina
Praticar a medicina sem pressa e com relação médico-paciente mais próxima e humana ajuda até mesmo na cura de doenças
- A medicina pode praticar o ideal do slow food
- Slow medicine defende proximidade na relação médico e paciente
- O perigo dos sobrediagnósticos, causados pela falta de conexão médico-paciente
- Médicos mais humanos é um fundamento da slow medicine
- Quando a conexão é o melhor remédio
- Tempo de atendimento deve ser de qualidade, sem pressa
- Praticar a medicina com conexão melhora a qualidade do serviço
Um amigo meu adora contar histórias de medicina do pai, um clínico geral que vivia para os pacientes. Mesmo depois de décadas, ele guarda na memória imagens irretocáveis das longas filas que começavam na porta do consultório, na cidade de Ibagué, eixo cafeeiro da Colômbia, e se estendiam calçada afora.
David se lembra das pessoas que pagavam a consulta com galinhas ou perus porque não tinham dinheiro, e das que chegavam de mãos vazias e eram atendidas do mesmo jeito. Observava fisionomias de desespero ganharem uma moldura de alívio ao sair da sala do médico.
Se fosse preciso, o clínico geral acordava de madrugada e ia atender casos urgentes, levando na maleta solução e alento.
Com ele, David aprendeu o significado da palavra “serviço”. Essa medicina feita para servir as pessoas com amor e cuidado, como a praticada pelo pai do meu amigo, povoa o nosso imaginário. É ela que queremos encontrar, sobretudo quando estamos passando mal ou assustados com um diagnóstico.
A medicina pode praticar o ideal do slow food
Mas isso é algo não muito frequente em nossos dias. Vivemos num tempo de consultas com minutos contados, feitas muitas vezes com a porta da sala aberta.
É raro encontrarmos médicos que nos escutam com atenção e paciência, que se demoram em exames clínicos e se interessam por detalhes de nossas queixas e vidas.
Na contramão dessa tendência, o cardiologista italiano Alberto Dolara percebeu que movimentos como o slow food faziam todo o sentido na medicina.
Em 2002, ele publicou um artigo no Italian Heart Journal fazendo um convite para uma medicina menos apressada. Do texto nasceu a Associação Italiana de Slow Medicine, com a missão de pregar uma relação médico-paciente sóbria, respeitosa e justa, além de desacelerar os atendimentos.
Slow medicine defende proximidade na relação médico e paciente
Não era só uma questão de cortar comportamentos que murchavam essa relação. Ela precisava passar por uma boa reforma, que começava por jogar no chão o muro que havia entre doutores, tidos como os donos do conhecimento, e doentes, cuja fala era pouco levada em conta.
Vem de longe esse distanciamento entre ambos. “É uma ideia um pouco romântica a do médico de antigamente ser esse doutor que compreendia mais as pessoas. Ele era autoritário. Tinha uma proximidade talvez maior, mas também uma posição que o colocava num patamar de diferença em relação aos pacientes”, avalia o geriatra José Carlos Aquino de Campos Velho, editor do site slowmedicine.com.br.
Essa hierarquia ainda sobrevive em muitos consultórios. Com a diferença de que hoje os profissionais contam com mais dados científicos e recursos diagnósticos e terapêuticos.
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O perigo dos sobrediagnósticos, causados pela falta de conexão médico-paciente
Com o avanço da tecnologia, muitos diagnósticos clínicos são substituídos por exames que precisam ser prescritos com cautela. Do contrário, o que acontece são conclusões equivocadas, que geram angústia e sofrimento ao paciente (ilustração: @tgouvea)
A falta de conexão com o médico nos mergulha num labirinto de dúvidas, inseguranças e descontentamento. “Essa é a maior queixa das pacientes que eu atendo. Que se perdeu a relação humana, a relação de encontro, essa coisa tão mágica que pode acontecer quando duas pessoas estão dispostas a dialogar”, destaca a ginecologista Halana Faria.
Uma lacuna que acaba sendo preenchida pela tecnologia. A confiança depositada nos exames complementares é tamanha que, com frequência, médicos abreviam a anamnese e dispensam os exames físicos.
O problema é que, sozinhos, os exames complementares geram equívocos. Principalmente quando médicos os pedem sem necessidade. Eles causam sobrediagnósticos, que são achados clínicos que não provocam sintomas ou danos à saúde. E que, portanto, não precisam ser tratados.
O mal dos sobrediagnósticos é sua consequência direta: os sobretratamentos. Em outras palavras, eles levam os pacientes a uma via sacra em busca de cura por meio de terapias e medicamentos.
É aí que habita o perigo, pois remédios em excesso são o gatilho para interações medicamentosas, ou seja, cruzamentos de drogas que podem provocar reações adversas.
Médicos mais humanos é um fundamento da slow medicine
Nos corredores do hospital, Jack Mackee pergunta à equipe qual é o primeiro paciente. “O terminal, do 1217”, o colega diz. “Terminal? Que terminal? Terminal de ônibus?”, questiona.
E insiste em saber o nome do homem internado. A demora da resposta o deixa furioso e ele dá uma bronca nos subordinados.
No passado, o cirurgião agia da mesma forma que eles. Era um profissional dos mais competentes, mas só focava no desempenho técnico. Isso mudou quando Jack soube que estava com câncer na laringe.
Do outro lado do balcão, sentiu na pele a frieza dos colegas, conviveu com quem compartilhava a mesma situação e passou a olhar os pacientes como iguais.
A transformação pela qual ele passou, retratada no filme Um Golpe do Destino (1991), é o que a slow medicine propõe para todos os médicos, pois pavimenta a estrada para a cura ou, quando não é possível, para o alívio dos sintomas.
Para isso, eles precisam estar conscientes do seu papel. “O profissional de saúde tem que ser um guia, um tradutor de evidências científicas, um tradutor daquilo que está acontecendo fisiologicamente”, resume Halana.
Por sua vez, o paciente deve se sentir à vontade para fazer perguntas.
Quando a conexão é o melhor remédio
A slow medicine busca retomar uma relação mais humana entre médico e paciente, na qual a escuta ativa e o trabalho em conjunto guiam para reestabelecer a saúde de maneira mais gentil
E o que tira o nosso sono pode nem ser algo sério. Às vezes, uma conversa com orientações sobre um estilo de vida saudável é o suficiente para o bem-estar voltar a morar em nós.
“Uma vez identificado o problema, é comum que o medicamento eficaz conste de palavras em vez de drogas”, relata o cardiologista Bernard Lown no livro A Arte Perdida de Curar (editora Peirópolis).
Ouvir é a arte mais refinada dos médicos, segundo o autor. Ela abre caminho tanto para a confiança, pedra fundamental da relação médico-paciente, quanto para um pilar importante da slow medicine: o compartilhamento das decisões.
Fazer uma escuta atenta e cuidadosa requer habilidade, segundo o autor. “Ouvir é o primeiro passo quintessencial para chegar ao diagnóstico correto, mas não é simplesmente oral. É preciso prestar igual atenção à palavra não dita, às contrações faciais que desmentem as palavras, à involuntária contração nervosa, ao cerrar e descerrar os punhos e, em geral, à linguagem do corpo.”
Depois dela vem a reflexão do médico, os possíveis caminhos a seguir e os sentimentos do paciente em relação a cada um deles. Portanto, o compartilhamento de decisões só é possível quando não se ergue um muro entre ambos.
O jeito que Halana encontrou de fazer esse obstáculo alto cair por terra foi dispensar o jaleco e não usar mesa em seu consultório.
“Isso tem o papel simbólico de demonstrar que a gente está em pé de igualdade, que não há uma hierarquia estabelecida”, conta.
Tempo de atendimento deve ser de qualidade, sem pressa
Quando o médico respeita o tempo, palavras não são apressadas ou caladas, e o raciocínio dele segue seu curso natural. O benefício vem logo em seguida.
Sem economia de informações de nenhuma das partes, não saímos do consultório carregando um calhamaço de pedidos de exames ou de receitas. As prescrições são feitas com cautela.
Consultas longas são necessárias em algumas especialidades, como a geriatria. Demanda tempo recolher queixas e sintomas e montar uma história clínica comprida, bem como avaliar os remédios que não fazem mais sentido porque pararam de ter efeito.
Rapidez também não funciona com doenças mais complexas.
Por uma série de questões, como a sala de espera cheia, a baixa remuneração pelas consultas ou mesmo a velocidade que a nossa sociedade imprime no dia a dia, não se costuma respeitar esse tempo.
“Existem trabalhos mostrando que o médico interrompe o paciente antes dos primeiros 10 segundos de fala”, lembra Halana. Isso nem sempre é um problema.
Algumas situações pedem a fast medicine. No pronto-socorro, por exemplo. Mas são exceções. E, num momento de emergência, quando passamos por algo mais agudo, um atendimento acolhedor também faz toda a diferença.
Praticar a medicina com conexão melhora a qualidade do serviço
Quando o vínculo foi criado ao longo do tempo e a nossa história clínica já é conhecida, mesmo num tempo mais curto é possível haver uma troca profunda.
Isso ajuda o médico a perceber quando o melhor remédio é observar, antes de pegar a caneta e encher a receita de medicamentos.
A espera para ver como determinadas enfermidades evoluem é um dos princípios da slow medicine. “Existem situações médicas que se autorresolvem sem necessidade de intervenção. Por meio de um exame clínico, de uma história médica adequada e de uma avaliação satisfatória, conclui-se que não há um tratamento específico no momento”, afirma José Carlos.
A slow medicine não é uma fórmula de varrer os sofrimentos. Até porque o nosso corpo não se mantém do mesmo jeito sempre.
“Na vida, a gente flutua entre estados de mais e menos saúde”, diz Halana. O que o movimento faz é adicionar humanidade na relação médico-paciente e estimular ambos a se unir num esforço compartilhado para trazer a saúde de volta.
É corrigir a rota dos descaminhos dessa relação e encontrar aquele que olha alguém para além de apenas um corpo. Mas, sim, um ser humano.
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SIBELE OLIVEIRA procura médicos que amam o ofício e uma boa conversa. Para ela, esse é o primeiro passo para a cura.
Conteúdo publicado originalmente na Edição 242 da Vida Simples
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