‘Coisificação’ esvazia o real sentido do bem-estar
Transformado em mercadoria, bem-estar perde seu verdadeiro significado quando vendido como 'estilo de vida ideal', o que alimenta frustrações, comparações e consumo desenfreado

Ao alcançar um equilíbrio entre fatores físicos, mentais, sociais e emocionais, conquista-se o estado de bem-estar. É um conceito muito subjetivo, que varia de pessoa para pessoa, de época para época, de país para país, mas é caracterizado pela sensação de se sentir inteiro, leve e bem consigo mesmo.
Como um conceito mutável, o bem-estar passa por uma nova mudança de significado. Mais do que questões filosóficas e internas de cada indivíduo, o comércio e a indústria interferem na visão sobre o tema. É a coisificação do bem-estar.
Primeiro: o que é coisificação?
A “coisificação” é um termo com origem na teoria crítica, que define o processo pelo qual as relações humanas, qualidades subjetivas ou aspectos abstratos da vida social são transformados em coisas, objetos e mercadorias. É como se emoções, ideias e vínculos fossem produtos disponíveis para compra e venda.
Segundo o professor de ciências sociais do UniArnaldo Centro Universitário, Luciano Gomes dos Santos, esse fenômeno está profundamente ligado ao “desenvolvimento do capitalismo e à lógica mercantil”, que tende a transformar tudo em mercadoria para ser comercializada, “inclusive aquilo que deveria permanecer no campo do humano e do subjetivo”.
“A coisificação implica uma perda de sentido e de autenticidade nas relações sociais, já que as pessoas passam a ser tratadas como meios para fins econômicos e não como fins em si mesmas.”
É fácil de observar esse fenômeno em alguns ambientes culturais e tecnológicos. As redes sociais, por exemplo, são um dos principais meios capazes de transformar experiências pessoais em conteúdos consumíveis. Nelas, a validação social (conceito abstrato) ganha valores mensuráveis (produto), como curtidas e compartilhamentos.
O cientista social aponta que a lógica de consumo contribui para que a coisificação ganhe mais força no dia a dia. As propagandas moldam o imaginário coletivo para atingir seus objetivos, enquanto as redes sociais reproduzem a vida perfeita e oferecem uma constante performance sobre o que você precisa ter e ser.
Tá bom, mas como o bem-estar se encaixa nesse conceito? Para responder essa pergunta é preciso entender o crescimento da indústria do wellness.
Indústria do bem-estar
A economia do bem-estar é definida pelo GWI (Global Wellness Institute) como a indústria que possibilita aos consumidores adotar atividades e estilos de vida saudáveis no dia a dia. Ela é fragmentada em onze principais setores, entre eles: esportes e atividade física, saúde mental, turismo, nutrição, beleza, medicina personalizada, etc.
De acordo com dados do GWI, essa indústria é a terceira maior do mundo, atrás apenas dos gastos médicos e da indústria manufatureira. Apenas em 2023, a movimentação dessa economia chegou a mais de 6 trilhões de dólares, com projeções que apontam para um crescimento exponencial dos diferentes setores até 2028.
No Brasil, entre 2020 e 2022, o wellness movimentou 96 bilhões de dólares, o que colocou o país em 12º lugar no ranking mundial. No entanto, o crescimento desse setor não acompanha a melhoria da qualidade de vida no país.
Dados do Ministério da Previdência Social apontam para um aumento no número de afastamentos trabalhistas causados por transtornos de saúde mental. Além disso, um estudo do Movimento Bora Sonhar mostrou que 25% das pessoas têm a saúde mental como sonho de vida. Outra pesquisa, do Instituto Locomotiva, aponta que seis em cada dez brasileiros afirmam não ter nenhum momento de tempo livre durante a semana.
Essa indústria não vende apenas os produtos que auxiliam a manutenção da saúde, estética e lazer, ela influencia as pessoas de modo a fazê-las acreditar que um bem-estar pleno só pode ser alcançado ao adquirir esses produtos. É um processo que molda o imaginário coletivo sobre o que significa viver bem.
“Em vez de representar o bem-estar como um estado complexo, subjetivo e multifacetado, a publicidade frequentemente o reduz a símbolos de consumo: o corpo perfeito, a casa dos sonhos, a viagem ideal, ou a produtividade extrema”, aponta Luciano. As redes sociais seguem a mesma lógica, ao promover pressão por determinados estilos de vida.
(Foto: Georgia de Lotz/Unsplash) Redes sociais apresentam performances do que influenciadores acreditam ser bem-estar, mas se comparar não é a saída
“O bem-estar passa a ser algo que se compra ou se exibe, e não mais um processo pessoal e profundo. Essa distorção serve aos interesses do mercado, que lucra com a promessa de felicidade instantânea por meio do consumo.”
Impactos
Ao comprar e reproduzir a ideia de um bem-estar construído por meio de produtos, as pessoas passam a medir sua felicidade a partir de padrões inalcançáveis. Não possuir e não alcançar vira frustração, ansiedade e sentimento de constante insuficiência.
“Esse modelo também incentiva a comparação social e a busca incessante por validação externa, prejudicando a construção de uma autoestima saudável” ressalta o professor. Na prática, as pessoas abandonam hábitos genuínos de autocuidado para seguir as fórmulas prontas e tendências do momento. Os resultados desses fatores levam a:
- Ciclos de consumo e insatisfação;
- Enfraquecimento de vínculos humanos;
- Esvaziamento do verdadeiro sentido de bem-estar;
- Vida emocionalmente superficial e fragmentada.
Como fugir dessa lógica
Segundo a neuropsicóloga Leninha Wagner, o bem-estar é quando a vida cabe dentro do peito com leveza. Sabe quando o dia está difícil e mesmo assim você é capaz de dar a volta por cima com calma, cuidado e confiança? Esse é o equilíbrio físico, mental, social e emocional.
“A alma humana não precisa de etiquetas, nem de última geração – ela pede presença. Rotinas de bem-estar nascem quando você escuta o que o seu corpo e o seu coração estão pedindo, sem esperar que algo de fora resolva o que está por dentro.”
O consumo de produtos e adoção de rotinas é uma forma de buscar o autocuidado, o que é um primeiro passo para o bem-estar. Mas é preciso ir mais longe e entender que “coisas” não serão capazes de proporcionar um equilíbrio completo. “Quando conseguimos nomear a dor por trás do impulso, a vontade de anestesiar começa a perder força. E aí entra o segundo passo: criar um novo jeito de cuidar dessa dor”, diz a especialista.
“É aos poucos. É sobre criar espaço dentro de si para o que está vivo sem precisar abafar com objetos.”
São coisas pequenas do dia a dia que fazem total diferença: deixar a luz do sol entrar dentro de casa e aproveitar o sol pela manhã, tomar um banho relaxante, fazer uma caminhada, tirar um tempinho para falar com aquele amigo que você não conversa a tempos, ouvir sua música favorita.
A prioridade do bem-estar é você, não produtos e rotinas milagrosas. Não acontece de uma hora para outra, mas é por meio de sementinhas de autocuidado que o equilíbrio nasce dentro das pessoas.
“Ter o bem-estar como norte é escolher não se abandonar. É acordar e lembrar que você importa. Que sua paz não é luxo, é base. Que não precisa esperar um sábado de folga ou uma viagem pra estar bem. Basta estar presente. Em você. Com você.”
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