TDAH: a vida sem foco
Por muito tempo considerada uma doença de criança, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade atinge muitos adultos que — sem diagnóstico e tratamento — podem ter uma vida difícil.
Por muito tempo considerada uma doença de criança, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade atinge muitos adultos que — sem diagnóstico e tratamento — podem ter uma vida muito difícil.
O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, conhecido pela sigla TDAH, é um transtorno neurobiológico, que geralmente se manifesta na infância e muitas vezes permanece para sempre com o paciente. Também já se sabe que é possível desenvolver o transtorno na vida adulta. Os sintomas do TDAH na pessoa adulta são diferentes dos apresentados na infância e adolescência. Assim, a desatenção aparece mais como uma desorganização, falta de planejamento de atividades e dificuldade com a noção de tempo. Já a hiperatividade se manifesta como desconforto pela quietude. E pode ser traduzida por acidentes automobilísticos, impaciência e más decisões. A cabeça do adulto com TDAH é cheia de pensamentos conflitantes.
La vida loca ou, meu mundo com TDAH
Latido de cachorro, vizinho com a televisão no volume máximo, obra no apartamento ao lado, crianças gritando no playground. “Que horas são?”, “Preciso molhar as plantas”, “Tenho que ligar para minha mãe “, “O que tem para comer?”, “É hoje que vence o condomínio”. Apenas cinco minutos sentada em frente ao computador e tudo isso já passou pela minha cabeça. Tudo ao meu redor chama a minha atenção. Tudo fala mais alto do que escrever este texto. Fecho a janela, checo o relógio, desligo a televisão, passo um café, como um chocolate. E então consigo voltar para explicar, ou tentar explicar como funciona a mente de um portador de TDAH. Ou o que eu costumo chamar de ‘zoeira mental’.
Se até pouco tempo atrás, acreditava-se que o transtorno fosse uma doença de criança, agora é cada vez mais comum que adultos se descubram portadores de TDAH.
Foi o que aconteceu comigo. A minha experiência como portadora diagnosticada do transtorno é bem recente, embora eu tenha carregado comigo a certeza de que havia algo errado desde criança. Fui diagnosticada com TDAH e com Transtorno de Ansiedade em meados de 2020, em plena pandemia. E, apesar de ter sido um choque (não é fácil escutar que se tem um transtorno psiquiátrico, imagine dois?), no fundo, eu já sabia.
Ian (Unsplash)
Pouca atenção ou atenção demais?
Eu não fui uma criança com “sintomas clássicos” de TDAH. Não era hiperativa, nem impulsiva. Na escola, eu tinha notas boas, apesar de ser uma aluna ‘desatenta’. Não tinha dificuldade de entender ou aprender o que era ensinado. Mas não conseguia prestar atenção no conteúdo dado na sala de aula por mais do que cinco minutos.
Minha mente viajava. O problema não era falta de atenção em uma coisa. Era excesso de atenção em tudo ao meu redor. E, é claro, quando tudo te chama a atenção, você não foca em nada. Desde criança me recordo de criar meus próprios métodos para aprender. Eu demorava mais do que os outros, mas funcionou por um bom tempo. E talvez por isso não tenha tido o diagnóstico mais cedo.
Mais dopamina, por favor.
Fora da escola, eu perdia o interesse e desistia de quase todas as atividades que começava: sapateado, flauta, vôlei, natação, jazz… Uma a uma, fui desanimando e deixando de lado. E essa desmotivação, sintoma clássico do transtorno, tem uma razão. A psiquiatra indiana, Dra. Jyoti Bhagia, da Mayo Clinic, sediada em Rochester, Minessota (EUA), explica que “estudos mostram que o cérebro do portador de TDAH tem alterações na região frontal, nos neurotransmissores (dopamina e noradrenalina) — que estabelecem as conexões entre os neurônios e são responsáveis pela sensação de prazer e aumento da motivação”. Ou seja, o cérebro do TDAH produz menos dopamina e noradrenalina.
Camila Quintero Franco (Unsplash)
Desistente crônico? Não, resiliente
Infelizmente, é comum que o adulto com TDAH seja tachado de desinteressado, irresponsável e incapaz. Quase um desistente crônico. O paulista Bruno Nunes é uma dessas pessoas que descobriu o transtorno na fase adulta da vida, quando cursava engenharia elétrica e chegou a um esgotamento mental e emocional em função de uma série de consequências do transtorno não tratado. “Depois disso fui entender o TDAH, me especializar em ferramentas do cérebro e da mente e fui coletando informações que me ajudassem”, revela.
No melhor estilo “fazer do limão, uma limonada”, Bruno trabalha há mais de 10 anos com treinamentos comportamentais, mais especificamente voltados para a aplicação de técnicas de Programação Neurolinguística para portadores de TDAH. Ele refuta a ideia de que o portador do TDAH desiste fácil de tudo. “Somos extremamente resilientes. Falhamos mais vezes, por isso somos obrigados a buscar soluções e recomeçar mais vezes também.”
O diagnóstico: da culpa à redenção.
Um sentimento citado por Bruno Nunes e que também me acompanhou por um bom tempo até o diagnóstico foi a culpa. “Nós, portadores de TDAH, vamos colecionando uma enorme culpa e os sintomas do transtorno fazem com que acreditemos que somos burros, preguiçosos, desorganizados. Uma série de coisas relacionadas ao transtorno. Por isso, muitas vezes, o diagnóstico pode ser uma libertação, porque traz com ele uma explicação para os comportamentos que julgávamos serem parte da nossa essência”, explica.
Sobre portadores de TDAH serem menos inteligentes, a psiquiatra Sônia Palma, do hospital Beneficência Portuguesa, de São Paulo, explica que não existe uma relação direta de inteligência e sintomas do transtorno. “Mas, ao serem realizados testes neurocognitivos, os portadores apresentam inteligência normal ou superior”, comenta.
Tiago Bandeira (Unsplash)
A informação contra o preconceito
Preguiçoso, desleixado e incompetente. Esse estigma que circunda o portador de TDAH também é questionado por Sônia Palma. “O preconceito está muito ligado à falta de informação e também de alguns profissionais da área da saúde desatualizados. Hoje temos um corpo robusto de informações cientificas, nacionais e internacionais, que sustentam o diagnóstico de TDAH. Assim, o primeiro passo é a informação através de campanhas educativas, debates, informações baseadas em evidências e psicoeducação”, esclarece.
Mas não se pode considerar TDAH todo adulto que tenha episódios de esquecimento, procrastinação ou desmotivação. Antes de tudo, o ideal é buscar o diagnóstico. E com isso em mãos, ir atrás de ajuda e de informação. Sônia sugere que o portador entenda o problema. Pois, apesar de ainda não se falar em cura, o transtorno pode ser tratado com medicamentos e com Terapia Cognitivo Comportamental (TCC). E os sintomas podem ser amenizados.
Modificando comportamentos, ressignificando emoções.
A psicóloga curitibana, Alana kuczera Toporowicz, especialista em Terapia Cognitivo Comportamental explica que o foco é solucionar problemas do presente, agindo sobre padrões de pensamentos e comportamentos. “A TCC estabelece uma relação com o paciente para que ele consiga desenvolver as habilidades necessárias para transformar pensamentos em emoções saudáveis e comportamentos disfuncionais em comportamentos funcionais.
Mas, uma vez medicados e fazendo terapia, qual o próximo passo? Se não tem cura, terei que tomar remédio para sempre? Essa é pergunta de um milhão de dólares, a dúvida que todo portador de TDAH tem. Anizabella de Oliveira Soares, psicóloga especialista em avaliação psicológica, conta que existe, sim, a possibilidade de alta médica. “O paciente aos poucos vai se tornando independente. A psicoterapia ajuda a amadurecer, a aceitar e a conviver com o diagnóstico. Existem casos em que o médico, ao perceber melhora, decide pela retirada ou diminuição do medicamento. O mais importante é que o indivíduo esteja bem consigo mesmo”, finaliza.
A bola de neve da culpa
Desde que consegui digerir o diagnóstico — com tratamento e apoio adequados — a sensação de caos e desorganização mental já estão mais amenas. Crio listas, coloco alarmes e tento criar uma rotina cheia de processos que façam sentido para mim. Às vezes, falho miseravelmente. E, quando isso acontece, me vejo de novo em uma grande bola de neve, que ao invés de neve tem culpa, ansiedade, frustração. Preciso entender e aceitar que amanhã preciso recomeçar.
Hoje sei que ter escolhido o Jornalismo foi uma decisão amplamente afetada pelo TDAH. Escrever foi a maneira que eu encontrei de aprender, de superar a falta de foco e atenção. Escrever, escrever, escrever… Na escola, escrever era parte do processo de conseguir manter o foco e a atenção por uns minutos além do meu habitual. E também me proporcionava revisar o conteúdo em casa, mais tarde. Mesmo que tudo aquilo estivesse em um livro ou apostila, eu escrevia. Hoje entendo também que tudo teria sido muito mais fácil se eu tivesse buscado ajuda desde o começo.
Sem ajuda, a vida com TDAH pode ser muito solitária.
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