COMPARTILHE
O que aprendi ao surfar
Jeremy Bishop | Unsplash
Siga-nos no Seguir no Google News
Neste artigo:

Em cima da prancha, deslizando entre as ondas, é possível aprender belas lições sobre a leveza e o equilíbrio necessário — no mar ou fora dele

Nasci em São Paulo e o surfe, que comecei a praticar bem cedo, tornou minha juventude de paulistano mais bela e leve. Minhas pranchas foram meus cavalos, companheiros de galopes livres, ondas afora, ao lado de grandes amigos – amantes desse esporte, como eu. Experimentamos, juntos, uma liberdade mágica, líquida, suave, ampla. Os sábados eram um antídoto vital contra o excesso de asfalto e concreto, que podem asfixiar o olhar e o coração de quem vive em uma grande cidade sem mar. 

Entretanto,  anos de grana escassa, amigos que pararam de surfar e os cuidados e tempo exigidos com meu bebê me afastaram do mar por um bom período. Até que decidi voltar à terapia das ondas este ano, no dia do meu aniversário de 50 anos. Chamei os dois amigos que mais surfaram comigo, mares e vida afora. E, justo aquele que não ia ao templo marinho havia mais de uma década, precisava de uma prancha emprestada.

Reunião de amigos

Conseguimos, então, de outro amigo (que não pôde estar presente) um instrumento mágico de mais de nove pés, shapeado — como dizemos no jargão desse esporte — pelo lendário Rico de Souza. Um dos pioneiros do surfe brasileiro: um pranchão clássico, de uma quilha só.

lições

Durante a session, ou a primeira entrada na água, em nossa praia do coração, localizada no trecho inicial do litoral norte paulista. E depois do velho amigo pegar com classe várias ondas —  exalando um sorriso rasgado que ele não dava há anos — pedi o brinquedo para experimentar também. Nunca tinha surfado de monoquilha antes. Estava acostumado à estabilidade e controle das triquilhas. Até que remei e me levantei para meu primeiro passeio com o pranchão amarelo e laranja, esculpido pelas mãos do surfista Rico. A transformação foi imediata, como se um novo portal se abrisse à minha frente – e na minha vida. 

Como se fosse uma dança

A quilha única, diferente das verdadeiras rodas que são as três quilhas, torna a prancha mais solta e instável. Por isso me obrigou – na verdade me inspirou, melhor dizendo – a caminhar com delicadeza na prancha. Para frente e para trás, a fim de me conectar melhor à onda que se abria. Os passos leves, quase flutuantes, “tirando o peso” – como exige, por exemplo, o balé –, me trouxeram o equilíbrio ideal para longos passeios, que pareceram eternos nas paredes líquidas. Essa, aliás, é uma das sensações mágicas que os surfistas experimentam: viver o infinito em alguns segundos, como se o tempo fosse expandido. Sim, me senti dançando a ancestral canção do pranchão pela primeira vez.

Tudo que eu vivera antes com pranchinhas ou pranchões modernos, por mais que tivesse me lavado a alma, purificado e levado ao êxtase, era muito diferente dessa dança da monoquilha. Uma dança que é também canção, como um blues suave e melódico, com a guitarra dedilhada com arte, mas sem pressa. As triquilhas me propiciaram anos e anos de fluidez veloz catártica antiestresse, e contra qualquer problema que houvesse deixado no continente. Assim, obtida com a explosão de algumas poucas manobras que eu conseguia dar, o pranchão monoquilha do Rico me fez, como em uma corda bamba, encontrar o equilíbrio para domar a instabilidade dos dias de hoje.

A chave da leveza

Talvez aí esteja a chave dessa leveza: a instabilidade da quilha única é, na verdade, a nossa sensibilidade aflorando. Precisamos ser mais sensíveis, reagir rápido, mas sem agressão. Surfar em comunhão com a prancha e a onda. Isto é: como se fôssemos um só ser.

Agora entendo totalmente – na pele, no coração, na mente e na alma (poucas outras atividades mexem com tudo isso, como o surfe) – que surfar de longboard é como amar. Segundo, me disse anos atrás o então jovem campeão mundial dessa modalidade, o australiano Beau Young. Sim, amor, porque o surfista que usa esse tipo de prancha mais longa entra de maneira mais profunda em sintonia com a onda, com mais calma. Cuidado e explorando cada espacinho de seu paredão de água.

E esse amar, Beau contrastava ao surfe, que era mais paixão incendiária: o surfe sexual, que seria o que rolava com a velocidade e a explosão maior do pegar onda com pranchinhas ou shortboards.

lições do surfe Tim Mossholder | Unsplash

Há tanto desamor e desumanidade por aí, nas relações entre as pessoas, no mundo, que surfar fazendo amor com as ondas, em uma manhã de céu límpido, só pode ser uma dádiva. Uma bênção de sal e água, vento e sol. E, paredes azuis que, como telas, convidam às delicadas pinturas dos longboarders. Mesmo agora, de volta à batalha do dia a dia, na rotina estressante e cansativa de São Paulo. Sobretudo nas ruas e avenidas da megalópole, na luta para encontrar mais trabalho, me sinto mais preparado. Uma vez que  a leveza é um antídoto poderoso contra a pressão e as dificuldades.

Leveza e beleza

E isso, agora entendo, aprendi com o surfe. A leveza necessária para surfar de monoquilha ensina que só a delicadeza e a sensibilidade domam essa “modernidade líquida”. Bem observada pelo filósofo polonês Zygmunt Bauman. Uma modernidade de relações, acontecimentos e trabalhos frágeis e efêmeros. Com um raro sentido ruim para o que é líquido.

Por fim, cada onda surfada, diferente da modernidade que nos escapa, todos os dias, entre os dedos, é água terapêutica que nos massageia e constrói. É um haikai (pequeno poema) que sintetiza a vida mais bela, um estar presente com todos os poros e sentidos.

Vida líquida

Na manhã sem fim, viajando em um pranchão monoquilha, finalmente compreendi o que o mestre Bruce Lee. O maior lutador-dançarino de todos os tempos falou sobre a necessidade e a eficácia dessa luta fluida. De acordo com ele “O lutador deve se comportar numa luta como a água – insubstancial, flexível”. E, como a água, “um combate não pode ter forma definida”. Sábio Bruce. Existe modo melhor de lutarmos e surfarmos a vida do que nos moldando ao que ela nos exige a cada desafio? Como se fôssemos água, como se fôssemos um pranchão bailarino?

Leveza não rima com beleza à toa. Reme lá para trás, onde o oceano semeia as ondas. E aproveite o melhor retiro do planeta. Aquele em que a meditação é iniciada e mantida com os pés, com o tronco elegante e a mente esvaziada de todas as impurezas, enquanto é preenchida com o balé e a canção das ondas. Como a dança e a música da vida ideal, em equilíbrio leve, quase etéreo, como se fôssemos naturalmente pássaros marinhos.


Zé Augusto de Aguiar é jornalista e professor. Seu amor pelas ondas foi traduzido em dois livros: Mundaka, primeiro romance brasileiro a abordar o universo do surfe, e As Ondas da Vida (Via Lettera).

0 comentários
Os comentários não representam a opinião da revista. A responsabilidade é do autor da mensagem.

Deixe seu comentário