Curiosidades sobre algumas receitas preferidas de artistas
De Harry Potter a Hemingway, mulheres preparam, ensinam, degustam e conversam sobre como as receitas fizeram parte do cotidiano de seus artistas e escritores preferidos
- Realizando as receitas da ficção
- Cocada original não tem leite condensado
- As receitas literárias preferidas da jornalista
- Quando as receitas são protagonistas das histórias
- Dupla investiga receitas preferidas de artistas
- Herança colonial também se faz presente à mesa
- A vida dos artistas e suas curiosidades culinárias
Um dia, relendo Dom Casmurro, um clássico da literatura brasileira escrito por Machado de Assis, a jornalista Denise Godinho se deparou com um trecho, entre os protagonistas da história, que atiçou seu paladar.
Era uma conversa entre Capitu e seu amado Bentinho, logo no início da obra. Assim que descobre que irá para o seminário, Bentinho vai até Capitu para lhe contar uma novidade nada boa.
Naquele exato momento, um escravo, que vendia cocadas em um grande tabuleiro, passou pelos jovens e lhes ofereceu o doce de coco, mas Capitu não se interessou.
Para Bentinho, esse foi o sinal de que ela estava abalada com a notícia de sua ida ao seminário — ela adorava cocadas e jamais as rejeitaria.
A questão é que as cocadas permeiam as páginas de Dom Casmurro e a desconfiança de Bentinho, anos depois, de que Capitu o traía.
Ao terminar esse capítulo inicial, Denise, inspirada pela narrativa, correu até a cozinha para fazer a tal da cocada. “Improvisei um beijinho com o que tinha em casa e que matou a vontade. E essa coisa de comer o doce, lendo sobre ele, me trouxe vários questionamentos sobre a obra: por que será que Machado de Assis decidiu alimentar Capitu
e Bentinho com cocadas? Será que ele gostava do doce ou o comia enquanto escrevia o livro?”
Realizando as receitas da ficção
Foi para responder essas e outras perguntas que nasceu o projeto Capitu Vem para o Jantar, que fala de literatura e as comidas presentes em suas páginas.
Primeiro em formato de blog com texto e receita, depois em livro editado pela Versus, e mais recentemente como um canal no YouTube, em que Denise segue com suas reflexões literárias e gastronômicas.
Depois de Dom Casmurro, Denise passou a ler os livros com outro olhar: o de quem quer aprender a cozinhar para, depois, se deliciar. E, dessa forma, entender mais sobre os livros e seus enredos — e sobre si mesma, por que não?
Sim, porque ao pesquisar sobre as receitas e os pratos citados nas obras literárias, Denise percebeu que eles podiam ser também parte da própria história.
No caso de Machado de Assis, ela descobriu que, em uma época na qual os costumes parisienses eram o modelo de comportamento para o mundo todo, o escritor seguia na contramão.
“Ele simplesmente não suportava pedir filet de poisson em um restaurante se podia dizer apenas filé de peixe. O palanque dos protestos eram os livros. É por isso que as referências aos alimentos em suas obras são sempre brasileiras, como o caso da cocada de Dom Casmurro”, escreve Denise nas primeiras páginas de seu livro.
Machado de Assis não concordava em que seguíssemos um modelo parisiense em relação à comida. Seus livros, que traziam referências aos pratos brasileiros, eram seu palanque de protestos
Cocada original não tem leite condensado
As cocadas estiveram presentes no decorrer do emblemático romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. O doce servia, aos olhos de Bentinho, como termômetro do amor de Capitu por ele (Foto: Shutterstock)
E só para fechar a história das cocadas e não deixá-lo com vontade, a jornalista foi atrás da receita original e descobriu, por exemplo, que ela não levava leite condensado — o ingrediente ainda não era produzido por aqui e trazê-lo da Europa era algo caríssimo.
Então as escravas cozinhavam tudo com mel e rapadura. Na versão que Denise traz em seu livro, a cocada leva:
- Um copo americano (200 ml) de água;
- 1 quilo de açúcar;
- Uma xícara de chá de coco ralado grosso;
- Duas xícaras de chá bem cheias de leite em pó.
O mais bacana da história de Denise e seu Capitu Vem para o Jantar é que entre uma leitura e outra — ela, que vem de uma família de italianos com portugueses — aprendeu a cozinhar. “Em casa todo mundo cozinhava bem e tinha o maior prazer nisso, então eu só aproveitava os banquetes sem me preocupar”, conta.
Mas ao ler e se enveredar pelas receitas ela percebeu que os dois juntos, literatura e comida, lhe trouxeram uma bagagem de conhecimento incrível e um apetite mais apurado.
“Aprendi a ler os livros com outro viés e que, em um país onde ainda se lê pouco, talvez usar a gastronomia seja um incentivo para que as pessoas se interessem mais por isso. Por fim, cozinhar se tornou uma terapia, um momento em que posso refletir sobre o que está acontecendo na minha vida enquanto bato um bolo. E como é divertido cozinhar algo que carrega tanta história”, resume.
As receitas literárias preferidas da jornalista
O livro de Denise traz mais de 50 receitas de pratos presentes em obras, de clássicos a leituras rápidas e leves. Há desde o cachorro-quente de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, ou a paella de Por Quem os Sinos Dobram, de Ernest Hemingway, até a desastrosa sopa azul de O Diário de Bridget Jones, de Helen Fielding, e o cosmopolitan de Cinquenta Tons de Cinza, de E. L. James.
Mas, como boa cozinheira e leitora, Denise tem suas receitas prediletas: o bouef bourguignon, do livro Julie e Julia; a cerveja amanteigada de Harry Potter; e a tal paella de Hemingway.
“Em Julie e Julia, Julia (Child, famosa autora de livros de culinária) diz que é um prato perfeito para quando colocam seu talento à prova. E eu tenho usado esse conselho. Faço esse prato toda vez que preciso receber alguém em casa”, revela.
“Uma vez, fiz para a mãe de um namorado e ela amou. O relacionamento acabou, mas a amizade com ela continuou, que sempre comenta sobre o sabor da carne, que nunca saiu da cabeça dela.” Já a cerveja amanteigada tem a ver com o fato de Denise ser fã de Harry Potter. “E a paella de Hemingway é uma receita que foi me dada pelo proprietário do restaurante Botin, que era frequentado por ele”, conta, com orgulho.
Quando as receitas são protagonistas das histórias
A comida sempre esteve presente nos livros, provavelmente porque são parte integrante da vida. Há obras em que ela é a protagonista, como em Como Água para Chocolate, de Laura Esquivei (Martins Editora), A Festa de Babette,
de Karen Blixen (Cosac Naify), Minha Cozinha em Berlim, de Luisa Weiss (Zahar), ou Comer, Rezar e Amar, de Elizabeth Gilbert (Objetiva).
Ok, neste último, os pratos ocupam apenas a primeira parte do livro, mas é irresistível a maneira como a própria Elizabeth vai se fartando com as massas, pizzas e molhos italianos. E a baita vontade que dá de comer cada um daquelas receitas.
Mais do que isso, a beleza está em perceber que, quando ela se delicia com tudo aquilo, não alimenta só o corpo, mas a alma, e se refaz, entre uma garfada e outra, do fim do casamento, da falta de sentido da vida. A comida, de certa maneira, a ajuda a se reencontrar.
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Dupla investiga receitas preferidas de artistas
É essa capacidade que a comida tem de nos fascinar e ensinar que atraiu a jornalista Michelle Strzoda e a historiadora e chef de cozinha Ana Roldão.
A dupla criou o projeto Degustando Palavras, uma série de encontros sobre cultura, memória, arte e literatura e sua relação com a cozinha. São conversas, com pratos deliciosos para comer ao final (claro!), que falam sobre a relação de artistas importantes com a comida.
Como, por exemplo, a escritora inglesa Jane Austen, a pintora mexicana Frida Kahlo, o pintor catalão Salvador Dali, a duquesa austríaca Maria Antonieta e o escritor português Fernando Pessoa.
Nos encontros, a historiadora portuguesa Ana Roldão, que é pesquisadora de comidas do século 19 e artes à mesa, conta, por exemplo, como Frida Kahlo registrava suas receitas em um caderno que a artista chamou de Livro da Erva Santa.
Ali, Frida não apenas passava a limpo suas receitas e pratos favoritos mas também suas memórias e intimidades. De novo, a comida presente na vida e vice-versa.”Frida gostava de receber, era uma ótima anfitriã. E, quando tinha visitas em casa, ia para a cozinha”, conta Ana, que também se dedica a fazer releituras de pratos históricos.
Frida Kahlo registrava suas receitas em um caderno chamado Livro da Erva Santa; Fernando Pessoa adorava arroz-doce; e Eça de Queiroz é um dos autores que mais abordam comida nos livros
“Não sou chef de cozinha, sou historiadora”, afirma de maneira categórica. “Mas, para fazer essas releituras, precisei aprender a preparar os alimentos”, diz ela.
Herança colonial também se faz presente à mesa
A paella, prato à base de frutos do mar, está presente em um dos melhores livros de Ernest Hemingway,
Por Quem os Sinos Dobram. O escritor aprendeu a prepará-la no restaurante Botin, inaugurado em Madri em 1725 (Foto: Istock)
A questão é que a comida sempre esteve muito presente na trajetória dessa historiadora. Ana nasceu e foi criada em Portugal. Quando criança, vivia na casa da avó Cacilda Roldão, uma mulher muito educada e refinada, que a ensinou todas as normas de etiqueta e regras à mesa.
“Ela cozinhava com preciosismo, das refeições do dia às mais elaboradas”, relembra Ana, que, por conseguinte, tem como receita predileta de infância a salada com rissole de camarão.
A paixão pelas artes à mesa, que definiu sua carreira profissional, veio desse tempo. O desafio de Ana, atualmente, é contar essas histórias, que têm tão a ver com a nossa história também — somos colônia portuguesa —, só que de um jeito atual.
Como falar sobre os hábitos portugueses que herdamos? Contando, como me revelou Ana, que Fernando Pessoa adorava arroz-doce. E que o também escritor lusitano Eça de Queiroz é um dos autores que mais abordam a comida nos livros.
A curadoria do Degustando é feita por Michelle, que não tem tanto apreço por cozinhar, mas aprecia um bom prato, as conversas que surgem em torno da cozinha, da mesa e os livros.
“A cozinha é o lugar da casa onde fico mais à vontade para contar histórias e também para conhecer mais o outro. Eu cresci lendo livros ou fazendo lição de casa na mesa da cozinha. Se não tinha borracha para apagar um errinho, por exemplo, usava o miolo de pão para esse fim”, conta ela.
A vida dos artistas e suas curiosidades culinárias
Hoje, a cozinha ainda segue sendo inspiração. “O italiano Leonardo da Vinci inventou o guardanapo e era vegetariano. E a gente nem sabe disso”, revela Michelle, que adora ler sobre artistas e escritores e descobrir curiosidades sobre eles ligadas ao comer.
“A escritora francesa Simone de Beauvoir, que sempre teve uma aura de arrogância, se libertava quando
o assunto era comida. Ela tinha encontros regados a bebida e comida com seu amante.”
E segue: “Agatha Christie (escritora inglesa) era uma vovó. Ao mergulhar na vida dela, descobri que o alimento que ela mais consumia era creme de leite e que adorava preparar receitas doces para o marido. Cozinhar era, para ela, tão importante quanto escrever”, conta.
É desse jeito que a historiadora Ana Roldão e a jornalista Michelle Strzoda vão, de um jeito doce — para fazer um trocadilho delicado —, apontando por meio da comida mudanças sociais tão significativas na vida de todos nós.
Ou que Denise Godinho recupera em seu Capitu Vem para o Jantar. Todas trazem essa atmosfera de bate-papo ao redor da mesa.
E, para fechar essa conversa de cozinha e livros, nada como recorrer ao moçambicano Mia Couto, que certa vez escreveu: “Cozinha não é serviço. Cozinhar é um modo de amar o outro”.
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Conteúdo publicado originalmente na Edição 195 da Vida Simples
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