Minha mãe tem Alzheimer
Quando o Alzheimer afeta alguém querido, o exercício da convivência se torna um desafio, mas pode render aprendizados profundos sobre amor
Quando o Alzheimer afeta alguém querido, o exercício da convivência se torna um desafio, mas pode render aprendizados profundos sobre amor, compaixão, aceitação e tolerância. Foi assim com a minha mãe.
Geralmente as crianças acham suas mães lindas, mas a minha era realmente linda! A imagem de criança que guardo na memória são seus cabelos longos e lisos, amarrados por um lenço de seda colorido, e seus olhos verdes protegidos por óculos escuros com armação de tartaruga. Eu ficava no banco de trás do nosso fusquinha admirando a beleza dela. Muitas vezes tinha ciúmes do meu pai e da relação amorosa que eles tinham. Ele foi um dos homens mais carinhosos que conheci. Se hoje sou próxima e afetuosa com meu filho e meu marido, devo muito isso a meu pai. Minha mãe, Carmem, apesar de linda, não era alguém dada a muitas demonstrações de carinho.
Mamãe foi uma mulher à frente de seu tempo. Diferente da maioria das mães de meus amiguinhos. Ela sabia dirigir, gostava de cinema e teatro, era professora universitária, estudou no Rio de Janeiro e fez mestrado. Além de tudo isso, casou com um francês “sem eira nem beira”, como se dizia na época, e foi mãe de três filhas após os 40 anos, todas nascidas em João Pessoa (PB), cidade onde passei minha infância e que me acolhe até hoje.
Entre o equilíbrio e a balança
Como não poderia me orgulhar da minha mãe, que no início da década de 1970 já era tudo isso? Infelizmente ela nunca reconheceu seu grande valor. Criada por uma família muito rígida, única filha entre cinco irmãos, cresceu escutando que a melhor opção para uma mulher era casar e ter filhos. Como casou “tarde” para os padrões da época, ela se sentia uma fracassada. Mas, apesar desse cenário construiu não só uma bela família mas uma carreira profissional da qual se orgulhar. E, claro, casou com um homem de grande valor, que soube valorizá-la e nos educar sem tantas cobranças. Papai era o equilíbrio, mas mamãe era a balança.
Ao longo dos anos, mamãe passou por muita coisa: a perda do seu companheiro de tantos anos; a saída, aos poucos, das filhas de casa; e precisou travar uma batalha dolorosa para superar e vencer um câncer de mama, que a abateu e a deixou bastante deprimida por algum tempo. Foi ela quem me ajudou nos momentos difíceis com a escola, com os amigos, com minhas irmãs, com meu pai, com minhas inseguranças, com meus namorados, com meu marido e com meu filho. Mas, infelizmente, sempre me faltou paciência com as suas trapalhadas e esquecimentos. O tempo passou e eu demorei a perceber que agora era ela quem precisava de ajuda e paciência para reaprender a viver.
Lapsos de memória por conta do Alzheimer
Mamãe começou a ficar muito esquecida e a se atrapalhar com eventos do passado e do presente. Tudo parecia se confundir em sua cabeça. Lembro que estávamos jantando, na casa em que construiu com papai, e ela olhou para o jardim e disse: “Quando eu e seu pai namorávamos aqui no jardim, seu avô não nos deixava passar das dez da noite”. Achei estranho e questionei, mas mamãe olhou para mim como se estivesse no passado, e confirmou o que havia dito. Resolvi então aceitar e mudar de assunto. Esse episódio me deixou preocupada, pois não era um esquecimento qualquer, mas uma confusão que envolvia lembranças e espaço físico.
Acho que passou um ano desde esse episódio que, para mim, era uma grave confusão. Com o passar do tempo, começamos a achar dinheiro guardado por toda parte da casa e suas idas ao banheiro aumentaram sensivelmente. Mamãe estava com incontinência urinária. Mas foi quando não quis mais ir à missa que passamos a nos preocupar seriamente. Ela estava deixando de sair de casa para não enfrentar possíveis situações constrangedoras – não conseguia mais controlar a própria urina e se recusava a usar fralda geriátrica. Tivemos muitas discussões sobre o assunto e eu sempre a julgava por ser muito teimosa.
Quando o amor fala mais alto
Para resolver a incontinência, ela passou por uma cirurgia de suspensão de bexiga que foi um sucesso, mas logo em seguida veio o pior, a incontinência fecal. A partir desse momento as coisas ficaram realmente bem complicadas para ela e para mim e minhas irmãs. Lembro claramente quando minha irmã me falou que ela não podia dormir suja e que eu tinha de limpá-la. Pensei: “Nossa! Isso não está certo, quem limpa a nossa bunda são nossos pais. Uma filha não foi preparada para limpar a bunda da própria mãe!”. Recusei-me, pois aquilo estava bem além dos meus limites.
Mas, um dia, o amor falou mais alto. Eu limpei mamãe, troquei a roupa dela e lhe dei um beijo. Aquele olhar confuso, envergonhado e agradecido me fez amá-la ainda mais. Percebi que dali em diante as coisas seriam diferentes entre nós. Assim terminou um longo período de discussões para dar início a uma nova etapa de compreensão, cumplicidade, alegrias e muito amor.
A relação com quem tem Alzheimer
Conviver com um familiar que tem Alzheimer não é nada fácil. As pessoas que estão mais próximas costumam adoecer também e até sentir alguns sintomas de esquecimento e confusão. Isso acontece pela proximidade, pelo dia a dia extremamente cansativo e pelo medo de desenvolver o Alzheimer. Nesse momento, o auxílio de um cuidador profissional é muito importante para amenizar a carga de trabalho, dos cuidados diários, e reservar aos familiares um convívio mais prazeroso. Decidimos então, contratar uma equipe de apoio profissional composta de enfermeiras, fisioterapeuta e fonoaudióloga.
Hoje, nos fins de semana em que passo com ela, convivemos juntas por muito mais tempo que o habitual. Gosto muito de levá-la à praça e então sentamos em um banco e ficamos conversando sobre como era nossa vida no passado. Eu a lembro de tudo o que fazia por nós e sempre agradeço. Como de costume, mamãe diz que não fez nada.
Acredito que precisamos resgatar a imagem de mamãe em nossa memória e valorizar a atual. A pessoa que conhecemos hoje não representa tudo o que ela foi para nós, mas ela ainda é mamãe e deve ser respeitada e amada como antes, ou até mais. Percebo, entre os familiares que não convivem com ela, um pouco de dificuldade com a situação. Na maioria das vezes, a tratam como uma inválida, que não sabe conversar e emitir sua opinião. Acho que fazem isso, na verdade, para não enxergar a dolorosa realidade. Então fica mais fácil ignorá-la.
Uma nova mulher
Pode parecer estranho para quem está de fora ou para quem não tem um parente próximo doente, mas descobrir em minha mãe uma nova mulher com sobrenome Alzheimer me fez valorizar mais nossa relação. É claro que essa não é uma jornada tranquila. Precisei, por exemplo, renunciar aos meus fins de semana de lazer, estar presente durante as refeições, acordar com ela de madrugada, ler sobre o assunto, fazer terapia, e o mais difícil, aceitar a situação. A partir do momento em que aceitei verdadeiramente a realidade, o passo seguinte foi desdramatizar os fatos e partir para tentar tornar a vida dela mais feliz.
A mãe que eu tenho hoje é alguém que passou a ser mais carinhosa e engraçada, gosta de jogar bola e de sair de casa todos os dias para passear. Ela até esqueceu que não gosta de vermelho e, por isso, minha irmã mais velha compra vestidos lindos e alegres para ela usar. Isso é fascinante! Cresci ouvindo-a dizer que não tinha mais idade para aprender e vivenciar coisas novas. Hoje, isso não existe mais. O Alzheimer permitiu-lhe experimentar o novo com mais leveza e liberdade.
Obrigada, mãe
Na contramão disso, há dias em que ela não quer comer, não quer dormir, não quer falar, dorme mal, passa a noite chorando ou irritada. Há pouco, falei com ela ao telefone, estava lúcida. Perguntou por meu marido e por seu neto e, como sempre, questionou sobre quando eu chegaria. O melhor de tudo é que ela conseguiu se comunicar e entendeu com clareza tudo o que eu estava falando. Aproveitei para falar que a amava muito. Aprendi que o importante é valorizar cada momento.
Não quero que as pessoas tenham pena da minha mãe, nem coisa parecida. Ela continua lutando
pela vida e contribuindo para sermos pessoas melhores. Talvez, se não fosse esse “alemão” (o Alzheimer), que persegue os velhinhos da atualidade, eu não tivesse toda essa dedicação e tanta oportunidade de retribuir tudo o que ela sempre fez por mim, e continua fazendo. Exatamente por isso, tenho repetido todos os dias para ela nos nossos encontros: “Obrigada, mãe, por continuar
me ajudando a crescer”.
Miriam de Farias Panet é arquiteta e professora universitária e também mãe de Joaquim, 12 anos.
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