O escritor angolano José Eduardo Agualusa, em visita ao Brasil para participar do Clube de Leitura CCBB, no Rio de Janeiro, conversou com a Vida Simples sobre o papel da literatura na transformação social, suas inspirações para a escrita e seu processo de criação. Nascido em Huambo, Angola, Agualusa tem ascendência brasileira e portuguesa, cursou Agronomia na Universidade Técnica de Lisboa, mas logo compreendeu que seu papel no mundo era na escrita. Assim, desde essa época passou a contribuir para jornais portugueses e brasileiros.
Hoje, com 62 anos, se diz um “escritor de ficção movido à poesia” e sente falta da crítica literária na imprensa, hoje ocupada, em grande parte, pelas redes sociais. “Gosto de ler algumas publicações francesas e inglesas, onde ainda se pratica o velho modelo da crítica literária”, explica. Para Agualusa, a boa literatura é “aquela que levanta questões, que inquieta”.
Na quarta-feira (12/07), o escritor se reúne a partir das 17h30 no CCBB do Rio de Janeiro para debater sobre o livro O Vendedor de Passados (2004). O evento ocorre na biblioteca do centro cultural, e tem curadoria e mediação de Suzana Vargas. É preciso retirar o ingresso gratuito antecipadamente, a partir das 9h de quarta (12), na bilheteria do CCBB ou de forma online.
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Vida Simples: O senhor é um escritor angolano reconhecido e premiado na literatura em língua portuguesa. Com descendência brasileira e portuguesa, imagino que há muito tenha sido influenciado pela cultura dos dois países, além de Angola, é claro. Os elementos transnacionais e culturais são importantes no momento de construir uma nova obra?
Agualusa: A obra de um escritor, naturalmente, exprime a sua vivência. A minha obra é o resultado dessa experiência de viver em países muito diversos.
VS: Os seus mais diversos livros costumam adotar narrativas próprias e contextuais, o que os diferencia uns dos outros. Ainda assim, o senhor é reconhecido por trazer questões sociais e políticas, explorando temas como identidade, história e poder. A literatura é, para você, um instrumento de transformação social?
Agualusa: Sem dúvida. A boa literatura é aquela que levanta questões, que inquieta. Toda a verdadeira literatura é transformadora. Nos meus livros trabalho com temas que me perturbam. Escrever ajuda-me a compreender o outro. Ajuda-me a compreender o mundo. A leitura também.
VS: Afinal, como nasce um livro de Agualusa? Como é encarar uma página em branco e se entregar a esse processo da escrita?
Agualusa: Os livros surgem de diferentes formas — a partir de um sonho. A partir de uma frase que nos ocorre caminhando. A partir de uma notícia num jornal. A partir de uma conversa com desconhecidos. Nunca acontece da mesma maneira. Em qualquer caso, um livro surge sempre de uma inquietação que já lá estava, que vinha fermentando dentro de nós.
VS: O senhor cresceu em uma época onde os jornais impressos e a mídia contribuíam na circulação dos escritores em língua portuguesa. Nomes como Antonio Candido, no Brasil; Eduardo Prado Coelho, em Portugal; ou David Mestre, em Angola, chegaram até você por meio da crítica. Acredita que as redes sociais e a internet têm suprido essa ausência?
Agualusa: Acredito que estão dando algum contributo, ocupando os espaços vazios. Mas sinto muito a falta de críticas mais consistentes, desses pensadores da literatura, que tinham espaço nos jornais para desenvolverem as suas ideias, e nos ajudavam a ler. Gosta de ler algumas publicações francesas e inglesas, onde ainda se pratica o velho modelo da crítica literária.
VS: Antes de se tornar escritor, você também estudou Agronomia em Portugal. Os conhecimentos agrários, de certa forma, o auxiliam na construção de suas narrativas?
Agualusa: Não. Nada. Ou me auxiliam tanto quanto o meu interesse por outras áreas do conhecimento humano, como a física quântica. Esses anos a estudar agronomia e silvicultura foram uma completa perda de tempo. Aproveitei muito mais fazendo fotografia ou namorando.
VS: O senhor comenta em entrevistas que a realidade política pós-colonial de Angola é uma de suas inspirações. Inclusive, um dos personagens do livro As mulheres do meu pai, é inspirado no cantor e compositor Pedrito do Bié. Angola é, de certa forma, o cenário dos seus livros?
Agualusa: Não, não é. O que eu disse é que existe nesse livro um personagem secundário, no caso, uma menina, que é inspirado no Pedrito do Bié, um músico angolano que se tornou famoso porque parecia uma criança, quando já era um homem adulto. A maioria dos meus romances decorre em Angola. Mas nem todos. Escrevi um romance sobre Goa, na Índia, e um outro cuja ação decorre sobretudo no Rio de Janeiro. O meu último romance, “Os Vivos e os Outros”, decorre na Ilha de Moçambique, uma pequena cidade histórica situada no norte de Moçambique, onde vivo parte do ano.
VS: Como um personagem se constrói em sua jornada de escrever uma obra?
Agualusa: Não tenho espaço aqui para responder a essa pergunta. O que aprendi ao longo dos anos, escrevendo, é que não podemos forçar um personagem a cumprir um determinado roteiro. Ele escolhe o seu próprio caminho.
VS: “Não existe identidade sem memória”, o senhor diz ao comentar sobre as imagens do rei dos Bamum no Museu Etnológico de Berlim. Angola e Brasil são dois países que ainda se recuperam de períodos coloniais traumáticos. Em alguma medida, compartilhamos também essa ausência de identidade?
Agualusa: Angola e Brasil cresceram juntos até aos finais do século XIX. Só depois se separaram. Então, são países que partilham uma mesma origem. O processo colonial tenta apagar memórias. Não significa que consiga. O mais provável, como aconteceu tanto em Angola quanto no Brasil, é o surgimento de culturas que agregam elementos coloniais e autóctones.
VS: Uma das barreiras da literatura em língua portuguesa no mundo é o próprio idioma, embora os esforços de tradução tentem suprir essa questão. Hoje, você avalia que os escritores e as obras em português ganharam mais espaço na literatura mundial?
Agualusa: O idioma nunca foi barreira nenhuma. Para isso, existem os tradutores. O que os nossos países deveriam fazer — Portugal até faz isso, mas não o Brasil nem Angola —, seria desenvolverem políticas sérias de apoio à tradução.
VS: O senhor comenta que é um “escritor de ficção movido à poesia”. Que poetas ou obras costumam lhe inspirar ou marcaram momentos de sua vida?
Agualusa: Um sem número de poetas: Senghor, Pessoa, Ferreira Gullar, Sophia, Ruy Duarte, Ana Paula Tavares, Nicolás Guillén, e tantos outros.
VS: Que escritores brasileiros você aprecia?
Agualusa: Clarice, João Ubaldo, Rubem Fonseca, Machado, Jorge Amado, Adriana Lisboa, Patrícia Melo, Marçal Aquino, Ricardo Aleixo, Ferreira Gullar, e tantos, tantos outros.
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