Quando estava no final da vida, o engenheiro e inventor italiano Guglielmo Marconi, conhecido por seu trabalho pioneiro em transmissões de rádio a longas distâncias, desenvolveu a teoria das frequências eternas.
Ele acreditava que o som nunca morria — que seu tom tornava-se mais suave, então não conseguíamos ouvi-lo, mas que com um dispositivo apropriado ele poderia se tornar audível novamente. “Imagine se pudéssemos ouvir Jesus fazendo o Sermão da Montanha?”
O inventor morreu em 1937 e nunca chegou a criar sua máquina de detecção sonora. Mas como essa fantasia era interessante! Pense no tanto de diálogos incríveis, que marcaram a nossa história, e que seríamos capazes de ouvir.
Na verdade, acho que até mesmo conversas pessoais valeria a pena escutar. Eu, por exemplo, adoraria ouvir as conversas que gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros (LGBT) tiveram quando descobriram que sua orientação sexual ou identidade de gênero era diferente daquela aceita como normal na família ou na sociedade em que eles foram criados.
A solidão de ser uma pessoa LGBT
A homofobia e a transfobia estão disseminadas por todos os cantos do mundo, em graus maiores ou menores. Para muitas pessoas LGBT, onde quer que elas estejam, há ao menos um denominador comum: a solidão ou o medo dela.
O medo de ser excluído, discriminado, de se sentir como uma pessoa inferior — o que leva ao isolamento e, às vezes, a traumas severos. Em alguns aspectos, a homofobia e a transfobia são diferentes da discriminação racial, na qual você se destaca da sociedade por causa da cor da sua pele, mas tem semelhança com seus parentes e familiares.
O mundo exterior pode ser hostil, porém você pode encontrar refúgio em casa. Ser gay num ambiente em que só se aceita a heterossexualidade é difícil, porque você provavelmente é diferente das outras pessoas da sua família e da maioria da sociedade. Você se sente seguro o suficiente para contar isso aos seus pais e irmãos?
Quando ser LGBT é crime
Sou integrante do Human Rights Watch (HRW), e entrevistamos muitos LGBT sobre o dilema de expressar sua orientação sexual ou identidade de gênero ou se manter em segredo.
Ser LGBT não é uma escolha, mas esconder uma parte vital da sua identidade é. Ficar no armário pode ser uma saída segura num ambiente hostil, mas também pode levar a sérias consequências negativas, incluindo ansiedade, medo, problemas de saúde e uma sensação profunda de solidão.
No relatório recente Eu Preciso Ir Embora para Ser Eu, sobre sete países do leste do Caribe nos quais a conduta homossexual é criminalizada, entrevistamos pessoas LGBT sobre os efeitos das chamadas “leis de sodomia”, que proíbem a conduta homossexual.
Essas leis invadem a privacidade e criam desigualdade. Elas degradam a dignidade das pessoas declarando seus sentimentos mais íntimos como ilegais ou antinaturais. E podem ser usadas para destruir vidas e carreiras. Elas levam as pessoas à obscuridade para viverem invisíveis e com medo.
Relatos de quem sofre homofobia em casa
Deixe que eu compartilhe algumas das vozes de pessoas que entrevistamos. Toby, um homem gay de 38 anos de Santa Lúcia, falou sobre sua experiência de extrema exclusão em casa: “Meu pai descobriu que sou gay quando alguém contou para ele. Quando minha mãe também ficou sabendo, não falou comigo por dois anos. Eu só podia usar um prato, uma colher, e não permitiam que eu encostasse em mais nada. Era como se eu tivesse uma doença contagiosa, eles se distanciaram de mim. Passei dois anos numa casa onde ninguém falava comigo. Eu não tinha a quem recorrer e estava sempre sozinho”.
Outro exemplo é o de Peter, um homem gay de Dominica. “Minha família não me aceita. Fui criado com os valores familiares sendo a coisa mais importante. Esperavam que eu fosse alguém que eu não era. Eu ia contra aquilo que a família queria. Eu tinha 16 anos quando cortei meus pulsos pela primeira vez; eu chorava e implorava que Deus me mudasse, mas ficou claro que isso não iria acontecer…”
Esses são apenas alguns exemplos de histórias colhidas em países do leste do Caribe. Mas, mesmo em lugares que não proíbem a intimidade sexual com o mesmo sexo, pessoas LGBT podem experimentar sentimentos de completa solidão.
Em 2017, o escritório do ombudsman dos Direitos Humanos Nacionais recebeu 1720 reclamações de violência, discriminação e outros abusos contra lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros. A maior parte envolvia discriminação, sendo mais da metade relacionada a violência psicológica e um terço incluindo também violência física.
Ah, se pudéssemos intervir na LGBTfobia…
Voltando a Marconi e sua máquina imaginária de ouvir sons. Imagine se pudéssemos ouvir todas essas conversas de pessoas que assumiram aquilo que são.
Indo além: e se inventássemos um dispositivo que nos permitisse participar dessas conversas? Assim, quando um pai falasse para sua filha lésbica: “Eu vou expulsá-la de casa”, poderíamos interferir. E, então, dizer: “Ei, pare, isso não é certo”. Não seria maravilhoso se pudéssemos mudar a negatividade nessas conversas convencendo o pai a amar sua filha por quem ela é, em vez de odiá-la por não ser quem ele quer que ela seja?
É claro que essa invenção é uma ilusão. E talvez devamos ser gratos por isso, porque ela seria mal utilizada. Frente à realidade, meus colegas no HRW estão reunindo fatos sobre a homofobia e a transfobia através de pesquisas rigorosas.
Apresentamos esses fatos a governos e a outros agentes combinados com análises legais e recomendações sobre como resolver os abusos aos direitos humanos que encontramos.
Às vezes somos bem-sucedidos, mas tornar o mundo um lugar melhor é uma batalha de longo prazo. Entendemos que repelir as leis discriminatórias anti-LGBT é uma coisa, mas afetar o coração e a mente das pessoas para criar uma mudança social é outra.
Compartilhar pode nos livrar da solidão LGBT
Recentemente, publicamos uma série de vídeos voltados para pessoas LGBT no Oriente Médio e na África do Norte, intitulada No Longer Alone (“Não Mais Sozinho”). Compartilhar essas mensagens nas redes sociais pode ajudar a levantar a nuvem de solidão e isolamento.
Ativistas corajosos desses países levantam suas vozes em árabe e compartilham sentimentos de medo e solidão, mas também dão mensagens de esperança: “Se eles não gostam do que você é, eles estão errados. Você não está sozinho, nós estamos com você”.
E isso vale para muitas outras situações na nossa vida. Às vezes, nos sentimos sozinhos com nosso sofrimento e não compartilhamos, não queremos nos expor. Mas isso só leva a mais solidão.
Compartilhar, dividir seus sentimentos mais profundos é um caminho para se sentir mais livre na vida. Melhor, você pode descobrir que não está sozinho.
Sobre a série Dilemas
A Série Dilemas é uma parceria entre a revista Vida Simples e a The School of Life e traz artigos assinados por professores da chamada “Escola da Vida”. A série tem como objetivo nos ajudar a entender nossos medos mais frequentes, angústias cotidianas e dificuldades para lidar com os percalços da vida.
A The School of Life explora questões fundamentais da vida em torno de temas como trabalho, amor, sociedade, família, cultura e autoconhecimento. Foi fundada em Londres, em 2008, e chegou por aqui em 2013. Atualmente, há aulas regulares em São Paulo. Para saber mais: theschooloflife.com/saopaulo
BORIS DITTRICH é diretor do Humans Right Watch. É líder mundial da organização pelos Direitos lgbt, na qual advoga falando na onu e também com ativistas, jornalistas, vítimas e stakeholders. Foi responsável por convencer o Vaticano a falar publicamente sobre os diretos dos homossexuais.
Mais da Série Dilemas
– Como é possível lidar com o fracasso?
– Insegurança: Como ter mais confiança em si mesmo
– Como encontrar em nós nossa melhor companhia?
Conteúdo publicado originalmente na Edição 197 da Vida Simples
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