“Apenas tente algo novo. Não tenha medo. Saia da sua zona de conforto e voe”. Essas palavras são de Michelle Obama, ex-primeira-dama dos Estados Unidos. A frase circulou bastante nas redes sociais, especialmente no LinkedIn. A ideia que ela traz questiona a posição que ocupamos e o porquê de não arriscarmos tanto assim em coisas novas.
Nos últimos anos, os conteúdos relacionados à zona de conforto cresceram exponencialmente e um dos clichês mais comuns entre qualquer roda de amigos era “você precisa sair da sua zona de conforto e se arriscar mais”. A realidade é que estamos sempre perseguindo esse desejo e avaliando que nunca estamos sendo bons o suficiente.
Há cursos, gurus, coaches e filmes que insistem que devemos nos arriscar e abandonar o que estamos acostumados a vivenciar (o nosso conforto), que às vezes nem é tão confortável assim. “Essa explosão tem profunda relação com a nossa cultura ocidental, onde a produtividade, a performance e a noção de ‘empresários de si mesmos‘ impactam e dão existência a esse sintoma pós-moderno.”, explica o psicanalista lacaniano Guilherme Facci.
Certamente, a maioria de nós já cedemos a pensamentos como “trabalhe enquanto eles dormem” ou a ideia de que precisamos dar o nosso máximo para conseguir algo que gostaríamos de obter. “Assim: devemos nos manter produzindo e nos superando cada vez mais. Tudo só depende de nossas ações. Devemos sustentar essa imagem… Mais e mais…”, complementa Facci.
Por que a zona de conforto se tornou um problema?
Considerado um assunto marginal até pouco tempo atrás, a zona de conforto se tornou uma grande pedra no sapato da maioria das pessoas que passaram a se sentir incomodadas com seus modos de vida, ações e escolhas profissionais, pessoais e familiares. Mas, se até então dávamos pouco importância a isso, em que momento a nossa percepção sobre o assunto mudou?
Uma das justificativas pode ser o surgimento do neoliberalismo, não só como um regime econômico que é hoje preponderante no mundo, mas também como um sistema que influencia diretamente os nossos comportamentos, modos de vida e percepções sobre nossas ações, como mostra o livro Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico, dos autores Christian Dunker, Nelson da Silva Junior e Vladimir Safatle.
“Para o capitalismo, é benéfico que as pessoas entreguem sempre em maior quantidade, cheguem a um máximo de contribuição, gerando cada vez mais lucro”, justifica Daniele Thomaselli, formada em Relações Internacionais pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e criadora de conteúdo na área de educação e produtividade.
A pressão é tão grande que a autoexigência de muitas pessoas para perseguir um lugar fora do seu conforto leva a níveis preocupantes de sofrimento psíquico e cargas de trabalho elevadas. “O que acontece nessa situação é que, para manter a qualidade da entrega e continuar sendo uma profissional bem vista no mercado, a pessoa se sobrecarrega e pode acabar tendo Burnout.”, complementa Daniele.
Não coincidentemente, esse termo – Síndrome de Burnout – surgiu justamente durante a década de 80, época em que o modelo de bem-estar social definhava nos países da Europa Ocidental e Estados Unidos para dar lugar ao neoliberalismo. “A partir desse momento se cria um discurso que parte da premissa equivocada de que o sucesso ou o fracasso dependeriam apenas de nós mesmos e de nossa pró-atividade”, lembra Guilherme Facci.
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Zona de comodismo
Muitas pessoas confundem a zona de conforto com a zona de comodismo e isso gera não só informações erradas como também influencia o pensamento e a forma como a maioria dos indivíduos avaliam essa questão. O que há, na verdade, é uma diferença entre esses dois conceitos que pode ser significativa para a compreensão desse problema.
“Acho que, nos últimos tempos, uma grande confusão entre os dois conceitos tem feito as pessoas acharem que precisam sangrar para conseguir o que desejam, que tudo deve ser doloroso, na base do máximo esforço (quando, na realidade, a estratégia se faz necessária para que determinadas coisas sejam conquistadas)”, afirma Daniele Thomaselli.
A profissional explica que a zona de comodismo é “o que nos mantém presos a situações pelas quais não temos desejo ou brilho nos olhos, mas que não possuem um custo de troca porque já fazem parte do nosso cotidiano, daquilo com o qual estamos acostumadas.” Por outro lado, “a zona de conforto é o conjunto de situações que nos faz sentir bem, confortável, que causa aquele ‘quentinho no coração’.”, conclui.
É possível sair da zona de conforto?
Nem sempre o discurso de sair da zona de conforto pode ser produtivo e qualificado para a maioria dos indivíduos, isso porque muitas pessoas compartilham inverdades e fazem análises superficiais da vida de cada um quando, na verdade, somos seres complexos, com desejos, interesses e comportamentos únicos.
“Como psicanalista, eu nomearia a chamada ‘zona de conforto’ como a nossa ‘fantasia primordial'”, explica Facci, “que seria a maneira singular que cada um de nós vê o mundo. Portanto do ponto de vista psicanalítico a ‘zona de conforto’ que cada um de nós construiu para si mesmo, tem importância fundamental porque é nossa maneira de existir no mundo“. Em certo sentido, esse espaço é onde moldamos a nossa identidade e nos apresentamos à sociedade.
“Não se trata de sair da zona de conforto, mas, sim, de sabermos nomear o que é a nossa zona de conforto, para o que ela nos serve e como podemos assumir uma posição a partir dela (e não fora)“, explica o psicanalista. Por isso, não precisamos enxergar necessariamente a zona de conforto como um problema ou algo a se libertar.
“A zona de conforto existe por um motivo. Há épocas da nossa vida em que a gente só consegue estar na zona de conforto porque tem outras coisas demandando energia mental e física”, explica Elaine Macedo, psicóloga e mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Como explica Facci, a “fantasia” de cada um de nós é “a nossa marca singular” e dificilmente conseguiríamos nos livrar dela. Por isso, “definir sucesso e realização a partir da ótica socialmente aceitável e reforçada leva a um adoecimento mental”, enfatiza Daniele Thomaselli.
“Zona de desconforto”
Para muitas pessoas a sensação de largar o emprego, mudar de carreira ou ir embora para um novo país é claramente uma ação que visa “sair da zona de conforto”, mas não é bem assim. O próprio Guilherme Facci, psicanalista entrevistado para essa matéria, deixou sua carreira na área de comunicação e criação para estudar psicanálise.
“O que eu fiz foi encontrar a minha zona de conforto! A minha profissão antiga era uma zona de desconforto! Quando eu fiz a mudança, escutei muita gente dizendo: ‘nossa como você é corajoso.’ A minha resposta para isso sempre foi: coragem você precisa ter para sustentar uma vida que vai contra o seu desejo. Precisa de muita coragem para suportar isso por uma vida inteira!”, conta o profissional.
Somos constantemente influenciados a nos comportar de forma homogênea, perseguindo conquistas materiais, profissionais e familiares, uma eterna corrida para uma fantasia criada nas últimas décadas. Daniele Thomaselli considera isso um comportamento de rebanho, “fazer aquilo que todo mundo faz, buscar aquilo que todo mundo busca. Definir sucesso e realização a partir da ótica socialmente aceitável e reforçada leva a um adoecimento mental“, explica.
O mesmo é justificado por Elaine Macedo que, depois da graduação, tomou a decisão de cursar um programa de mestrado e doutorado nas suas áreas de interesse. Mas, isso não aconteceu com todos os seus amigos e colegas da universidade, porque muitos decidiram ir para o mercado ou assumir cargos de gestão, e isso não representa o sucesso ou fracasso de alguém e sim onde cada um se sente mais confortável em seguir sua vida profissional.
“Hoje em dia, esse discurso de sair da zona conforto é tão forte e compartilhável porque nós vivemos em uma sociedade que pede sempre mais dos sujeitos. Nós estamos o tempo todo querendo aprender mais, produzir mais, sermos parceiros melhores em um relacionamento, pais melhores ou filhos melhores”, complementa a psicóloga.
Chegar lá?
Provavelmente você já ouviu alguém falar no famoso “chegar lá”, um lugar inexistente, que não sabemos muito bem onde fica e que representaria o nosso sucesso. Por isso, estamos sempre buscando ser mais produtivos, estudar mais do que gostaríamos e perseguir determinados objetivos que irão nos levar até esse local.
“Pois então, se tudo depende apenas de nós mesmos, aquele que não ‘chegou lá’, ( e o que seria chegar lá?) é um ‘looser’ um ‘perdedor’. Me parece que o discurso neoliberal é efeito e não causa de nossa neurose‘, analisa Guilherme Facci. Certamente, esse discurso causa níveis de sofrimento psíquico significativos e “reduz o sujeito a um mero ‘instrumento de produção’ que pode e deve sempre ser aprimorado”, complementa Facci.
“Cada um deveria questionar o que faz sentido para si, construindo uma vida com mais sentido e senso de realização. Você continua tentando ‘chegar lá’ sem nem saber o que lá é porque não há identidade e identificação nos objetivos traçados”, explica Daniele Thomaselli.
Discursos como esse podem se tornar problemáticos e ocasionam na maioria das vezes ilusões sobre o que seria sair da zona de conforto. E, afinal, “também existe felicidade e sucesso na zona de conforto“, lembra Elaine Macedo, não precisamos abandonar o lugar onde estamos e gostamos para perseguir um ideal que nos foi ensinado a buscar.
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