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Ingredientes do afeto
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Um caderno de receitas traz à tona memórias e saudades. E, desse jeito delicado e também saboroso, nos ajuda a manter viva a nossa história

A novidade que minha paciente trazia era o caderno de receitas que fora da mãe. Por descaminhos e por sorte, como veremos, desapareceu por muito tempo para voltar em um momento propício. Órfã desde bebê, mal tem lembranças da mãe. Como resultado, foi acolhida pelos avós maternos enquanto esses tiveram força e depois rolou pelas famílias dos tios. A melancolia do pai a via como a reencarnação da esposa perdida. Criou-se um afastamento incontornável. Quando juntos, o constrangimento fazia o silêncio gemer.

Agora ela estava adulta, enfim, os piores tropeços passaram, saiu-se bem. A maternidade recente despertara sua curiosidade pela mãe com a qual mal conviveu. Foi então que uma tia telefonou. O caderno de receitas reapareceu durante o desmanche da casa dos avós. Era uma agenda diária da década de 1960, brinde de um banco extinto. Enorme, algo como 30 x 20 cm, a capa desgastada não revelava o conteúdo, a dona foi identificada pela caligrafia de professora.

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Só receitas preenchiam as páginas. Algumas escritas à mão; outras, recortes colados, grampeados, fixados com durex amarelado e solto. Eram retiradas de revistas e jornais, de rótulo de lata meticulosamente descolado. Suspeitamos que outro caderno teria sido o original, já que havia manuscritos entre as colagens. A letra miúda e disciplinada garantia serem da mesma dona. Ao contrário da caligrafia, a sucessão caótica de receitas acompanhava o desconcerto da forma. Doces com salgados, entradas com sobremesas, receitas francesas ao lado de comida campeira. Poucas páginas vazias ao final.

Ingredientes do amor materno

Essa agora era a bíblia das lembranças dela. Nada mais restava de sua mãe, o que lhe contavam não a ajudava a construir uma imagem. O caderno, alinhavado pela edição da genitora, era o mapa do tesouro que sempre procurara. Nele adivinhava o caráter da mãe, seu estilo, sua visão de mundo. O vazio deixado pela morte precoce a obrigou às escavações e deduções a partir dos hieróglifos culinários.

Depois de testemunhar o entusiasmo arqueológico dela, me emocionei por perceber que tenho um catálogo de memórias culinárias que nunca transmiti às minhas filhas. Ana Holanda, editora desta revista, em seu livro de receitas afetivas, Minha Mãe Fazia, conta que os silêncios de nossas mães e avós rompem-se nessas listas de ingredientes e modos de fazer.

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Anos atrás, uma das minhas filhas deu-me de presente de aniversário um caderno para registrar minhas receitas. A capa era uma colagem feita por suas mãos. Ela sabia que adoro cadernos, mas, ao contrário dos tantos destinados a estudos, desenhos, diários e memórias de viagens que preenchi, esse permanece vazio. Talvez ainda dê tempo de colocar nele algumas receitas de amor materno.

Diana Corso é autora do livro Tomo Conta do Mundo — Conficções de uma Psicanalista.

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