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Curiosidades sobre algumas receitas preferidas de artistas
O bouef bourguignon, do livro Julie e Julia, é prato de grande valor simbólico na obra, a qual conta a história de Julie, que recria o livro de receitas da culinarista Julia Child. E entre um modo de fazer e outro se reencontra consigo mesma (Foto: istock)
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Um dia, relendo Dom Casmurro, um clássico da literatura brasileira escrito por Machado de As­sis, a jornalista Denise Godinho se deparou com um trecho, entre os protagonistas da história, que atiçou seu paladar.

Era uma conversa entre Capitu e seu amado Bentinho, logo no início da obra. Assim que descobre que irá para o seminá­rio, Bentinho vai até Capitu para lhe contar uma novidade nada boa.

Naquele exato momento, um escravo, que vendia cocadas em um grande tabuleiro, passou pelos jovens e lhes ofereceu o doce de coco, mas Capitu não se interessou.

Para Bentinho, esse foi o sinal de que ela estava abalada com a notícia de sua ida ao seminário — ela adorava cocadas e jamais as rejeitaria.

A questão é que as cocadas permeiam as páginas de Dom Casmurro e a desconfiança de Bentinho, anos depois, de que Capitu o traía.

Ao terminar esse capítulo inicial, Denise, inspirada pela nar­rativa, correu até a cozinha para fazer a tal da cocada. “Improvisei um beijinho com o que ti­nha em casa e que matou a vontade. E essa coisa de comer o doce, lendo sobre ele, me trouxe vá­rios questionamentos sobre a obra: por que será que Machado de Assis decidiu alimentar Capitu
e Bentinho com cocadas? Será que ele gostava do doce ou o comia enquanto escrevia o livro?”

Realizando as receitas da ficção

Foi para responder essas e outras perguntas que nasceu o projeto Capitu Vem para o Jantar, que fala de literatura e as comidas presentes em suas páginas.

Primeiro em formato de blog com tex­to e receita, depois em livro editado pela Versus, e mais recentemente como um canal no You­Tube, em que Denise segue com suas reflexões literárias e gastronômicas.

Depois de Dom Casmurro, Denise passou a ler os livros com outro olhar: o de quem quer aprender a cozinhar para, depois, se deliciar. E, dessa forma, entender mais sobre os livros e seus enredos — e sobre si mesma, por que não?

Sim, porque ao pesquisar sobre as receitas e os pratos cita­dos nas obras literárias, Denise percebeu que eles podiam ser também parte da própria histó­ria.

No caso de Machado de Assis, ela descobriu que, em uma época na qual os costumes pari­sienses eram o modelo de comportamento para o mundo todo, o escritor seguia na contramão.

“Ele simplesmente não suportava pedir filet de poisson em um restaurante se podia dizer apenas filé de peixe. O palanque dos protestos eram os livros. É por isso que as referências aos ali­mentos em suas obras são sempre brasileiras, como o caso da cocada de Dom Casmurro”, es­creve Denise nas primeiras páginas de seu livro.

Machado de Assis não concordava em que seguíssemos um modelo parisiense em relação à comida. Seus livros, que traziam referências aos pratos brasileiros, eram seu palanque de protestos

Cocada original não tem leite condensado

Receitas da literatura As cocadas estiveram presentes no decorrer do emblemático romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. O doce servia, aos olhos de Bentinho, como termômetro do amor de Capitu por ele (Foto: Shutterstock)

E só para fechar a história das cocadas e não dei­xá-lo com vontade, a jornalista foi atrás da recei­ta original e descobriu, por exemplo, que ela não levava leite condensado — o ingrediente ainda não era produzido por aqui e trazê-lo da Europa era algo caríssimo.

Então as escravas cozinha­vam tudo com mel e rapadura. Na versão que Denise traz em seu livro, a cocada leva:

  • Um co­po americano (200 ml) de água;
  • 1 quilo de açú­car;
  • Uma xícara de chá de coco ralado grosso;
  • Duas xícaras de chá bem cheias de leite em pó.

O mais bacana da história de Denise e seu Capitu Vem para o Jantar é que entre uma leitu­ra e outra — ela, que vem de uma família de ita­lianos com portugueses — aprendeu a cozinhar. “Em casa todo mundo cozinhava bem e tinha o maior prazer nisso, então eu só aproveitava os banquetes sem me preocupar”, conta.

Mas ao ler e se enveredar pelas receitas ela perce­beu que os dois juntos, literatura e comida, lhe trouxeram uma bagagem de conhecimento in­crível e um apetite mais apurado.

“Aprendi a ler os livros com outro viés e que, em um país onde ainda se lê pouco, talvez usar a gastronomia se­ja um incentivo para que as pessoas se interes­sem mais por isso. Por fim, cozinhar se tornou uma terapia, um momento em que posso refle­tir sobre o que está acontecendo na minha vida enquanto bato um bolo. E como é divertido co­zinhar algo que carrega tanta história”, resume.

As receitas literárias preferidas da jornalista

O livro de Denise traz mais de 50 receitas de pratos presentes em obras, de clássicos a leitu­ras rápidas e leves. Há desde o cachorro-quen­te de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, ou a paella de Por Quem os Sinos Dobram, de Ernest Hemingway, até a desastrosa sopa azul de O Di­ário de Bridget Jones, de Helen Fielding, e o cos­mopolitan de Cinquenta Tons de Cinza, de E. L. James.

Mas, como boa cozinheira e leitora, De­nise tem suas receitas prediletas: o bouef bour­guignon, do livro Julie e Julia; a cerveja aman­teigada de Harry Potter; e a tal paella de He­mingway.

“Em Julie e Julia, Julia (Child, famosa autora de livros de culinária) diz que é um prato perfeito para quando colocam seu talento à pro­va. E eu tenho usado esse conselho. Faço esse prato toda vez que preciso receber alguém em casa”, revela.

“Uma vez, fiz para a mãe de um namorado e ela amou. O relacionamento aca­bou, mas a amizade com ela continuou, que sempre comenta sobre o sabor da carne, que nunca saiu da cabeça dela.” Já a cerveja aman­teigada tem a ver com o fato de Denise ser fã de Harry Potter. “E a paella de Hemingway é uma receita que foi me dada pelo proprietário do res­taurante Botin, que era frequentado por ele”, conta, com orgulho.

Quando as receitas são protagonistas das histórias

A comida sempre esteve presente nos li­vros, provavelmente porque são parte integran­te da vida. Há obras em que ela é a protagonista, como em Como Água para Chocolate, de Laura Esquivei (Martins Editora), A Festa de Babette,
de Karen Blixen (Cosac Naify), Minha Cozinha em Berlim, de Luisa Weiss (Zahar), ou Comer, Re­zar e Amar, de Elizabeth Gilbert (Objetiva).

Ok, neste último, os pratos ocupam apenas a primei­ra parte do livro, mas é irresistível a maneira co­mo a própria Elizabeth vai se fartando com as massas, pizzas e molhos italianos. E a baita von­tade que dá de comer cada um daquelas receitas.

Mais do que isso, a beleza está em perceber que, quando ela se delicia com tudo aquilo, não ali­menta só o corpo, mas a alma, e se refaz, entre uma garfada e outra, do fim do casamento, da falta de sentido da vida. A comida, de certa ma­neira, a ajuda a se reencontrar.

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Dupla investiga receitas preferidas de artistas

É essa capacidade que a comida tem de nos fas­cinar e ensinar que atraiu a jornalista Michelle Strzoda e a historiadora e chef de cozinha Ana Roldão.

A dupla criou o projeto Degustando Palavras, uma série de encontros sobre cultu­ra, memória, arte e literatura e sua relação com a cozinha. São conversas, com pratos deliciosos para comer ao final (claro!), que falam sobre a relação de artistas importantes com a comida.

Como, por exemplo, a escritora inglesa Jane Austen, a pintora mexicana Frida Kahlo, o pintor catalão Salvador Dali, a duquesa austríaca Maria Antonieta e o escritor português Fernando Pessoa.

Nos encontros, a historiadora portuguesa Ana Roldão, que é pesquisadora de comidas do século 19 e artes à mesa, conta, por exemplo, como Frida Kahlo registrava suas re­ceitas em um caderno que a artista chamou de Livro da Erva Santa.

Ali, Frida não apenas pas­sava a limpo suas receitas e pratos favoritos mas também suas memórias e intimidades. De no­vo, a comida presente na vida e vice-versa.”Fri­da gostava de receber, era uma ótima anfitriã. E, quando tinha visitas em casa, ia para a cozinha”, conta Ana, que também se dedica a fazer relei­turas de pratos históricos.

Frida Kahlo registrava suas receitas em um caderno chamado Livro da Erva Santa; Fernando Pessoa adorava arroz-doce; e Eça de Queiroz é um dos autores que mais abordam comida nos livros

“Não sou chef de co­zinha, sou historiadora”, afirma de maneira ca­tegórica. “Mas, para fazer essas releituras, pre­cisei aprender a preparar os alimentos”, diz ela.

Herança colonial também se faz presente à mesa

Reveitas da literatura A paella, prato à base de frutos do mar, está presente em um dos melhores livros de Ernest Hemingway,
Por Quem os Sinos Dobram. O escritor aprendeu a prepará-la no restaurante Botin, inaugurado em Madri em 1725 (Foto: Istock)

A questão é que a comida sempre esteve muito presente na trajetória dessa historiado­ra. Ana nasceu e foi criada em Portugal. Quan­do criança, vivia na casa da avó Cacilda Roldão, uma mulher muito educada e refinada, que a en­sinou todas as normas de etiqueta e regras à me­sa.

“Ela cozinhava com preciosismo, das refei­ções do dia às mais elaboradas”, relembra Ana, que, por conseguinte, tem como receita predileta de infância a sa­lada com rissole de camarão.

A paixão pelas ar­tes à mesa, que definiu sua carreira profissional, veio desse tempo. O desafio de Ana, atualmen­te, é contar essas histórias, que têm tão a ver com a nossa história também — somos colônia portuguesa —, só que de um jeito atual.

Como falar sobre os hábitos portugueses que herda­mos? Contando, como me revelou Ana, que Fer­nando Pessoa adorava arroz-doce. E que o tam­bém escritor lusitano Eça de Queiroz é um dos autores que mais abordam a comida nos livros.

A curadoria do Degustando é feita por Mi­chelle, que não tem tanto apreço por cozinhar, mas aprecia um bom prato, as conversas que surgem em torno da cozinha, da mesa e os li­vros.

“A cozinha é o lugar da casa onde fico mais à vontade para contar histórias e também pa­ra conhecer mais o outro. Eu cresci lendo livros ou fazendo lição de casa na mesa da cozinha. Se não tinha borracha para apagar um errinho, por exemplo, usava o miolo de pão para esse fim”, conta ela.

A vida dos artistas e suas curiosidades culinárias

Hoje, a cozinha ainda segue sendo inspiração. “O italiano Leonardo da Vinci in­ventou o guardanapo e era vegetariano. E a gen­te nem sabe disso”, revela Michelle, que adora ler sobre artistas e escritores e descobrir curiosidades sobre eles ligadas ao comer.

“A escrito­ra francesa Simone de Beauvoir, que sempre te­ve uma aura de arrogância, se libertava quando
o assunto era comida. Ela tinha encontros re­gados a bebida e comida com seu amante.”

E segue: “Agatha Christie (escritora inglesa) era uma vovó. Ao mergulhar na vida dela, descobri que o alimento que ela mais consumia era cre­me de leite e que adorava preparar receitas doces para o marido. Cozinhar era, para ela, tão importante quanto escrever”, conta.

É desse jeito que a historiadora Ana Rol­dão e a jornalista Michelle Strzoda vão, de um jeito doce — para fazer um trocadilho delicado —, apontando por meio da comida mudanças sociais tão significativas na vida de todos nós.

Ou que Denise Godinho recupera em seu Capi­tu Vem para o Jantar. Todas trazem essa atmos­fera de bate-papo ao redor da mesa.

E, para fe­char essa conversa de cozinha e livros, nada co­mo recorrer ao moçambicano Mia Couto, que certa vez escreveu: “Cozinha não é serviço. Co­zinhar é um modo de amar o outro”.

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Conteúdo publicado originalmente na Edição 195 da Vida Simples

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