Acolha seus limites
Quando conseguimos perceber nossas necessidades e nos respeitar, ganhamos mais saúde física e emocional e escolhemos o que nos faz bem
Quando conseguimos perceber nossas necessidades, ganhamos mais saúde física e emocional e escolhemos o que nos faz bem
Terminei aquela sexta-feira com uma única certeza: “preciso ver o mar!”. A semana não havia sido fácil: escolhas profissionais a fazer, documentos a registrar, pessoas a comunicar, expectativas a corresponder. De repente, tudo me pareceu (novamente) pesado demais. Noites sem dormir direito. Estômago emaranhado. Choro fácil e uma conversa mental exaustiva e constante: “como posso dizer ‘não’ sem ofender?”, “como negociar o que mereço sem parecer prepotente?”, “como dizer o que quero sem desagradar?”.
Já tinha passado por essas sensações em outros momentos, mas dessa vez algo parecia diferente. E naquele dia, por um desejo quase urgente, eu havia percebido algo importante.
Talvez eu não precisasse exatamente do mar, mas do que ele representava: a possibilidade de me reconectar, parar, respirar, ouvir os meus sons internos tal como o som das ondas. Estava, finalmente, conseguindo perceber e acolher os meus limites?
Nossas necessidades
Bem, limites são as necessidades que cada um de nós temos, sejam físicas ou emocionais, e caracterizam a nossa própria humanidade. Se essas necessidades não são supridas, sofremos e, depois de algum tempo, adoecemos. Mas, afinal, se todos nós temos limites, por que parece tão difícil identificá-los e, principalmente, respeitá-los?
Entender a dinâmica da sociedade pode nos ajudar a perceber como lidamos com as nossas necessidades, como nos propõe o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em seu livro Sociedade do Cansaço (Vozes). Vivemos hoje uma sociedade do desempenho, que nos impõe a positividade de um poder ilimitado, de uma capacidade de realização infinita, mas que nos conduz a uma lógica quase perversa do dever da motivação, iniciativa e aumento de produtividade, gerando sensação de constante fracasso. “O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração.
Crédito: Sage-friedman | Unsplash
Essa é mais eficiente que uma exploração do outro, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade”, propõe o filósofo. Também em busca de compreensão sobre a influência das dinâmicas da sociedade na nossa maneira de olhar para nós mesmos, a professora Brené Brown, em sua obra A Coragem de Ser Imperfeito (Sextante), analisa que vivemos uma cultura de escassez. Isso quer dizer que, tanto nas grandes esferas sociais quanto nas da família, do trabalho e da escola, cultivamos a sensação de nunca ter ou ser o bastante, o que conduz a uma percepção frequente de inadequação. Nesse sentido, a autora ressalta que a necessidade de admiração pode ser um alívio para a “dor de sermos comuns e inadequados”.
O corpo dá sinais
Caroline de Oliveira Bertolino, psicóloga e facilitadora de círculos e espaços de transformação por meio da conexão com a gentileza, esclarece que os nossos limites sinalizam nossas fragilidades enquanto seres humanos. O que nos leva a um desafiadorlugar de humildade em uma sociedade que nos incentiva a ser super-humanos. Assim, influenciados a não ouvir nossas emoções e sobrecarregados de tarefas, deveres, comparações, cobranças e expectativas, vamos nos desconectando de nós mesmos. “Toleramos os abusos porque não nos sentimos dignos de ter os nossos direitos e necessidades atendidos. A falta de validação social diante do nosso sofrimento é um fator relacionado à tendência de permanecermos ignorando os nossos limites”, explica.
Encarar os sintomas que nosso corpo manifesta apenas como problemas indesejáveis a serem eliminados é mais um indício da desconexão com a nossa essência. “Nós nos anestesiamos e silenciamos as nossas emoções, como se sentir fosse algo inadequado”, argumenta Caroline.
Diante disso, a médica homeopata Evelin Carneiro nos convida a observar os sinais que o corpo dá. “Se não há respeito aos limites e não nos atentamos para isso, o corpo físico elencará sinais claros, ainda sutis no início desse processo. Mas quando há constante falta dessa percepção, quadros depressivos e doenças psicossomáticas podem se instalar”, detalha a homeopata.
Crédito:Umit Bulut | Unsplash
Não cobrança
Ela também alerta que o desrespeito aos sinais do corpo pode se manifestar em situações simples do dia a dia, como não interromper o trabalho para se alongar depois de horas sentado ou não parar atividades da rotina para beber água e hidratar o corpo. Segundo a homeopata, os progressivose acumulativos graus de cobrança e a tentativa de ter vários braços para abraçar as
solicitações do mundo podem nos levar à pane psíquica e ao burnout.
Assim, podemos entender que estabelecer limites é um exercício legítimo de autoamor e autocuidado. “Quando conseguimos nos respeitar, finalmente podemos nos oferecer o que muitas vezes esperamos que os outros ofereçam. O paradoxo é que, quando nos sacrificamos, esperamos que os outros façam o mesmo e acabamos nos ressentindo depois”, argumenta a psicóloga Caroline. Ao reconhecermos nossa necessidade de cuidado e afeto, entendemos que o outro também carrega essas características.
Olhar para o outro
Então, buscamos a liberdade mútua de não ter que se ferir para agradar o outro, na mesma medida em que o outro não precisa se anular para nos atender. Mais conscientes e gentis, caminhamos juntos para a possibilidade de sentir e fazer escolhas alinhadas com as nossas necessidades pessoais, sem peso.
Sobre esse processo, Caroline sensivelmente nos lembra que “dar limites é, em outras palavras, validar a raiva, uma emoção importante que nos permite limitar o que não nos serve. Com isso, abrimos espaço para o que de fato será nutritivo para nós. E isso não significa egoísmo, pelo contrário. É como se precisássemos de um tempo de recarga diária para repousar.
Depois disso, temos muito mais a compartilhar”. E assim, ouvindo o som das nossas próprias ondas e acolhendo a natureza do nosso mar, podemos nos sentir mais confiantes para navegar por outros mares, com a possibilidade de, a cada nova viagem, escolher a rota que nos faz verdadeiramente bem.
ANAIZA SELINGARDI é jornalista, ama o mar e as palavras, e busca constantemente entender o movimento das próprias ondas.
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