O que aprendi ao resgatar animais
Mesmo depois de maus-tratos, os bichos ainda são capazes de perdoar e ensinar uma grande lição: a do amor puro e verdadeiro
Mesmo depois de tanta dor provocada pelo homem, os animais resgatados ainda são capazes de perdoar e ensinar uma grande lição: a do amor puro e verdadeiro
Minha vida começou a ser transformada há 15 anos, depois de ter pedido um aumento ao meu então chefe. Eu trabalhava com processamento de dados e havia conseguido uma vaga na IBM. Morava nos Estados Unidos por causa do emprego e viajava bastante. A companhia tinha convênio com muitas marcas, então, quando meu chefe perguntou se eu queria um aumento para comprar um carro novo, até interessado em me ajudar através dessas parcerias, eu caí na real.
Tinha 27 anos e comecei a me questionar: “O que eu estou fazendo aqui? Por que quero mais dinheiro para comprar mais coisas de que não preciso?”. Me vi no meio de uma sociedade consumista, cujo apelo por mais e mais é extremo, e o sentimento de insegurança diante do medo da falta é igualmente grande. O pedido de aumento virou um pedido de demissão: eu estava decidida a largar aquilo tudo.
Eu já era iniciada na meditação havia dez anos, e resolvi ir para a Índia atrás de respostas. Algumas pessoas ficaram surpresas com minha decisão, mas eu não acreditava mais naquele mundo em que eu vivia, naquela rotina cheia de horários para entrar e sair, me sentia consumida por um capitalismo cruel. Decidi que ficaria na Índia até calar as minhas perguntas – e eu tinha vários questionamentos.
O despertar de uma nova consciência
Achava que a vida deveria ser mais. Sinto que esse sistema todo é construído para as pessoas dormirem, para não pensarem. Para viverem acorrentadas em ilusões e em medo. Eu queria um novo sentido. Na Índia, fiquei em peregrinação com vários mestres, depois segui para a Indonésia e a Tailândia, onde tomei votos com um monge.
Em 2007, já no Brasil, decidi me mudar de São Paulo, junto com Vitor, meu marido. Hoje vivemos na zona rural da cidade de Camanducaia, sul de Minas Gerais, em um sítio simples no meio de uma montanha, que nomeamos de Santuário Vale da Rainha. Aqui vivem animais de grande porte que sofriam maus-tratos e foram resgatados, e hoje cuidamos uns dos outros.
Acho que o Santuário é um resultado da nossa história que fala de um despertar, de uma nova consciência. Porque, depois disso, a gente começa a se questionar sobre qual é a responsabilidade de cada um dentro do caos que a gente agora vê. A princípio, parece que o mundo está perdido, mas não! Agora é que temos a chance de pensar em como fazer diferente. E aí me abri pra saber como poderia contribuir para essa mudança.
Santuário Vale da Rainha
Santuário para animais resgatados
A intenção do Santuário é não só proteger esses animais maltratados mas também nos conscientizar. É como cuidar do bicho animal e também do bicho gente. Afinal, se eu sou bicho, como eu tenho o direito de fazer o que eu faço com outro bicho? Falamos de “animal de estimação”, e me pergunto por que estimamos uns e matamos outros. Não só matamos mas colocamos no prato. Ou escravizamos, fazendo que o animal trabalhe à exaustão para nós.
Por isso escolhemos voltar nosso maior foco aos animais de grande porte, que ainda recebem menos atenção do ativismo. Hoje vivemos com 48 animais, é como uma comunhão. São cavalos, búfalos, bezerros, cabritos, bodes… E a nossa ideia é abrigar o maior número possível de espécies.
É bonito ver como, depois de recuperadas, elas conseguem viver em harmonia e respeito, diferente dos homens, intolerantes às diferenças. Mas, até que o animal confie em nós novamente, é um processo que pede respeito e paciência, e aí já nos ensina. Cada bicho tem uma história diferente de maus-tratos. Uma vaca que é escravizada para produzir leite, um cavalo que, em época de lazer para o hipismo é bem cuidado, mas que depois passa um longo tempo no sol, sem beber água, sem ser alimentado. Um porco à espera do abate, um touro pacífico que é provocado para agir de forma agressiva, à beira da insanidade.
São tantas formas de torturá-los que penso que eles vivem um holocausto. E isso é muito doloroso: vejo nos olhos deles a dor e o medo quando chegam aqui. Pouco tempo atrás recebemos uma búfala que durante três noites chorou copiosamente. Ela estava triste e traumatizada, chifrava a cerca, avançava na gente. Aos poucos, vamos nos aproximando, conversando, cantando e tentando reestabelecer um vínculo de confiança, até que perca o medo do homem.
Lições de amor
E logo eles nos ensinam sobre o perdão, o amor verdadeiro. Mesmo depois de tanto sofrimento, ainda são capazes de nos amar sem julgamentos, sem querer nada em troca. Desse modo, fica uma lição para nós, que ainda não sabemos perdoar, não sabemos amar sem reservas. Nós primeiro submetemos quem um dia desejamos amar a testes dignos de super-heróis para depois, quem sabe, amá-los – e na condição que nos amem também.
Não nos entregamos ao amor.Escutamos que os bichos são assim por não terem memória. Mas, depois de anos imersa na presença de plantas e animais, me alegro registrando que um cão é capaz de sentir o cheiro de seu ofensor quando o vê. Uma planta saberá das intenções do teu coração quando teu pé sentar na terra e, por conhecer você sem apresentação, ela minguará ou brotará à luz da tua presença.
O amor que temos experimentado, juntamente com a gratidão, lealdade e perdão, abriu precedente para um mundo que então não tínhamos entrevisto antes da convivência com eles. Por isso, no Santuário nós os chamamos de mestres, e cada um recebe um nome que homenageia mestres da nossa história. A ironia de tudo foi ter peregrinado em busca de mestres a vida inteira, caminhado pelos confins do mundo em busca da verdade, do amor e da iluminação… E tê-los encontrado no nosso quintal, disfarçados com pelos e rabos.
E é através dessa entrega e desse amor que também queremos conscientizar o bicho homem. Por isso, nos comprometemos a não mostrar imagens tristes dos nossos mestres. Queremos que os bichos sejam vistos felizes, alegres. O homem até pode se conscientizar através de uma cena traumatizante, ao ver uma vaca ou porco maltratado, mas o que nós queremos é que essa consciência venha pelo amor.
Animais resgatados: convite para transformar
Ao amar de verdade, não vai mais maltratar; só haverá o cuidado. Para mim, a transformação verdadeira e sem volta é através do amor. Vejo que isso acontece quando recebemos visitantes aqui, que interagem com os animais e experimentam essa troca mágica. E depois vão embora diferentes para sempre. Adoramos quando as crianças chegam, é lindo! Os pequenos têm uma compaixão natural, querem amar aqueles bichos. Preservar isso neles faz com que não se tornem adultos cruéis e sádicos. A criança vai nutrir esse amor para sempre.
E o curioso é que essa consciência começa com o amor aos animais, mas aos poucos vai se ampliando. Então você pensa não só no bicho mas no que você come. Questiona a origem dos alimentos, se preocupa com o lixo que produz, se atenta às condições de trabalho de quem confeccionou o que você agora veste. Até os padrões de beleza são repensados. Eu decidi que não pintaria os cabelos e vejo uma beleza natural e madura nascendo dos meus fios brancos. Parece desconectado, mas tudo está mesmo interligado. Assim, o despertar muda nosso olhar sobre todas as escolhas.
Servir é o caminho
Aqui, a gente trabalha muito, mas não há um pôr do sol que não venha acompanhado de aprendizados e gratidão. De manhã e à tarde, alimentamos os animais. Também passamos longas horas com eles nos pastos, muitas vezes em silêncio, mas sem que isso represente falta de comunicação. É um convívio de paz. Entre uma refeição e outra, meu marido cuida das estruturas, arruma cercas, vai atrás de medicações, enquanto eu recebo meus alunos para aulas de ioga e meditação.
Também cuidamos da nossa plantação de orgânicos. Além disso, há os dias em que recebemos visitação, como de escolas que chegam com as crianças. Meu marido outro dia disse que aqui não se trabalha, aqui se serve. E acho que é isso. Então, passamos tanto tempo em um sistema em que somos servidos e vejo que o grande salto está em servir, em não ter garantias.
Todo o nosso trabalho com os animais resgatados é mantido graças às doações e, mesmo diante de todas as incertezas, sinto que dá certo porque é uma tarefa que somos requisitados para fazer, e fazemos em uma entrega de confiança. Nossa pretensão foi querer ajudar, quando tínhamos tão pouco para oferecer, especialmente tratando-se de seres que precisavam de coisas práticas e cuidados específicos.
Os resgatados somos nós
E hoje eu observo como a minha saúde e a do meu marido também foram transformadas. A gente não reflete sobre isso, mas imagine o que isso significa para o seu corpo quando come a carne de um animal que foi tão maltratado e escravizado. Aqui, eles também nos chamam para uma prática de amor e compaixão, respeito e perdão. Ensinam algo que nós também temos mas está adormecido.
Pode ser que alguém ainda sinta que é difamante colocar animais resgatados no patamar de mestres. Mas eles se apresentaram assim humildemente. Constantemente me lembro das alegorias hindus comentando de mestres que passam despercebidos aos discípulos mais sedentos de orientação simplesmente por não estarem conduzindo massas ou com roupas apropriadas a um mestre. Quando começamos o projeto, tínhamos a ideia de que eles viriam morar conosco. Hoje sabemos que moramos com eles. E que os resgatados somos nós.
Patricia Andrade Varela Favano junto com Pegasus
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