Por que razão as relações fracassam?
A busca do par perfeito — ou “da pessoa certa” — pode se tornar um estado crônico e inviabilizar relações verdadeiras
A busca do par perfeito — ou “da pessoa certa” — pode se tornar um estado crônico e inviabilizar relações verdadeiras
Nunca a busca do amor foi tão popular. Talvez porque as situações-limite — como a pandemia do Covid-19 — sacodem os valores e põem em relevo o que realmente dá sentido à vida. Já foram abordadas aqui as várias teorias sobre o amor romântico e como elas não funcionam na prática. Essa dissonância — mostrada com o exemplo prático dos seus próprios autores — despertou nos leitores da Vida Simples todos os tipos de questões… e angustias. Recebi perguntas desde “como é amar na prática?” até a íntima “por que o meu marido amua?” A filosofia — com a ajuda da psicanálise — pode dar algumas pistas. Porém, fica aqui um aviso: a filosofia não tem nenhum compromisso com a felicidade. Ela, quando muito, promove a lucidez.
Vejamos. O melancólico Soren Kierkegaard , conhecido por se ocupar de “como” o homem deveria viver, escreveu sobre o casamento; Carl Jaspers coloca o “conhecer a si mesmo” como base para a busca do relacionamento amoroso; e o contemporâneo Alain de Botton, acusado — e, digo eu, de forma injusta — de popularizar em demasia a filosofia, publicou um artigo muito interessante no New York Times, onde explica porque “você vai se casar com a pessoa errada” (eu avisei!). A proposta aqui é uma visita guiada pelo interior do relacionamento amoroso. Venha comigo.
Bom, mas não o suficiente
A primeira razão que fará você se casar — ou já se casou 😵 — com a pessoa errada é: você é esquisito. Nós somos esquisitos. Somos homo sapiens, diria Yuval Harari. Não somos a pessoa certa. E não é pelo nosso lado escuro ou pelos esqueletos que guardamos no armário. Não é por má fé ou porque tendemos a suavizar os nossos abismos. É porque temos pouca consciência de quem somos. Não temos a dimensão real do quanto é difícil conviver conosco. E aqui não falo de admitir que se acorda de mau humor, que se tem mau gênio… Não se trata do que está à vista. O que nos torna de difícil consumo, digo, convívio está em camadas mais profundas.
Eu?
Profundas para nós… e aqui a gênese de todos os problemas. Quem é que “enxerga” esse nosso eu desconhecido? Os outros. Alain de Botton diz que os nossos pais sabem quem somos, mas por razões óbvias não nos dizem. Os nossos amigos sabem quais são as nossas falhas, mas não estão preocupados em dizer-nos. Afinal, são os nossos amigos. Outra fonte inesgotável de conhecimento sobre nós? Os nossos ex-parceiros. As rupturas civilizadas podem ser uma grande chance para sabermos a verdade. Mas não é o que acontece. Geralmente as últimas palavras são “o problema não é você, sou eu”; “você é uma pessoa maravilhosa, eu tive muita sorte em conhecer você”. Eles sabiam de imensas coisas erradas em nós, mas não estavam interessados em dizer. Por que iriam se incomodar com isso?
Quem sou eu?
Karl Jaspers afirma que a construção de uma relação se entrelaça, a todo o momento, com a construção de si próprio. Saber quem somos facilitam muito o caminho em direção ao outro. Ocorre que lidar com pensamentos desconfortáveis, encarar limites e, principalmente, as emoções que emergem quando estamos entregues a nós mesmos, não é um caminho que fazemos alegremente. Aliás, muitos aproveitam uma relação para “viver no outro”. Para além do desconforto, forças terríveis contribuem para desestimular esse exercício: temos uma pré-disposição para hábitos, adições ou qualquer tipo de alienação. E aqui explica-se a adesão massiva aos suportes digitais e todas as suas algemas, como as redes sociais. É inegável que eles usam golpes baixos para captarem a nossa mente, mas a verdade é que não suportamos estar dentro de nós. E no que depender da tecnologia, não passaremos um só minuto com nós mesmos. Há quem passe a vida inteira em fuga de si mesmo e, simultaneamente, na busca do outro. É uma bicicleta dupla, onde só um pedala. Não vai dar certo.
Comprometido, eu?
Há uma categoria de pessoas que, ao longo da vida, coleciona parceiros, mas que nunca teve uma única relação amorosa. Não existe relacionamento sem compromisso, nem mesmo a amizade existe sem compromisso. Qual é a dificuldade? Muitas, mas por uma questão de espaço, cito duas. A primeira é que o compromisso implica assumir fragilidade diante do outro. Uma das grandes complicações do amor é a tarefa de admitir para o outro “eu preciso de você”, “não vejo a minha vida sem você”.
Por que alguém faria isso? Há um impulso dentro de nós — reforçado pela cultura — de que devemos ser fortes e autossuficientes. Nada de baixar defesas e assumir carências. Inclusive, há quem encare a necessidade de afeto como uma fraqueza. É por essa razão que a dificuldade em assumir compromisso é mais acentuado no homem. Trata-se de uma questão da cultura e da psicobiologia: a fragilidade está vetada ao macho.
Outra razão? A ideia de que se poderá encontrar alguém melhor. É claro que isso não é público. Geralmente usa-se o argumento de que não se está apaixonado, que é uma relação sem futuro, por isso e aquilo. Poucos admitem que mereciam alguém melhor. E a pessoa fica ali no limbo do outro. Está ali, mas não está; entrou na casa, mas deixou a mala na porta.
Não procurar o que é bom
Não é preciso ser psicanalista para entender que as nossas escolhas amorosas estão assentes nas nossas experiências na infância. E lá, nem tudo foi ternura e generosidade. Também fomos desapontados e humilhados. Há pais severos e críticos e a experiência do amor na infância pode estar ligada a vários tipos de sofrimento. E o que acontece na vida adulta? A crença é de que buscamos parceiros que nos façam felizes, mas não. Estamos à procura de parceiros que sejam familiares, que sejam parecidos com o nosso modelo de infância. Um amigo quer apresentar a pessoa perfeita para você? É uma perda de tempo. Não estamos em busca de um parceiro para sermos felizes. Estamos em busca de formas de sofrimento que nos sejam familiares e isso compromete a nossa capacidade de encontrar um bom parceiro.
A insegurança
O mar da insegurança tem muitos afluentes. A sensação de não ser amado; O acúmulo de coisas não ditas; O sentimento de não ser bom o bastante para o outro. A insegurança é um freio de mão, uma espécie de veneno que impede a fluidez e o prazer nas relações. O mal é que quando estamos inseguros, ficamos exigentes, perdemos flexibilidade e queremos tudo do nosso jeito. A teoria do apego diz que, na insegurança, tornamo-nos muito processuais. Ao invés de dizer “senti a sua falta”, dizemos “você chegou tarde”, “você está diferente”. Quem tem uma personalidade mais vincada, esquiva-se, finge que está tudo bem. Resultado: tornamo-nos tristes e desagradáveis para o outro.
Bem x mal
Somos maniqueístas e somos ainda mais quando amamos. Temos dificuldade em reconhecer que alguém que amamos será uma mistura desconcertante do bom e do mau. E não deveria ser assim, afinal desde que nascemos começamos esse aprendizado. Na infância demoramos a integrar que os pais são bons e maus. Primeiro, a criança pensa que a mãe (ou o pai) são dois, um bom e outro mau. Numa fase seguinte — por volta dos quatro anos, segundo a psicanalista Melanie Klein — finalmente a criança integra os dois comportamentos na mesma pessoa.
Compreendendo isso, a criança torna-se capaz de odiar e amar a mesma pessoa. Essa é uma conquista psicológica enorme e que devemos continuar praticando por toda a nossa vida. Portanto, aceite que o seu amor é brilhante e perfeito, mas também é decepcionante e cansativo. É normalíssimo. Devemos aceitar que aqueles que amamos, uma vez ou outra vão nos desapontar. Maturidade é a capacidade de aceitar que não existem santos e pecadores. “Somos essa mistura maravilhosamente desconcertante do bom e do mau”, diz Botton. Logo, o amor não é apenas a admiração pela força e a beleza do outro, mas também é a tolerância com as fraquezas.
Amuado de novo?
Outro inimigo das uniões felizes é a tendência que temos para acreditar que quanto mais uma pessoa é certa para nós, menos teremos que explicar sobre quem somos, o que sentimos e o que nos magoa. Um dos grandes delírios humanos é achar que o outro tem de adivinhar os nossos pensamentos. É moroso e aborrecido passar para as palavras o que sentimos, então quando se trata daqueles que amamos, temos o desejo profundo de sermos compreendidos sem palavras.
Parece um anseio inofensivo, mas quando frustrado, transforma-se no muro abominável que separa o mais apaixonado dos casais: o amuo. Botton considera o ato de amuar um fenômeno muito interessante porque não o exercitamos com qualquer um. Amuamos com pessoas que sentimos que nos deveriam entender e, no entanto, por alguma razão infernal, decidiu não o fazer. É por isso que tendemos a reservar os nossos amuos para pessoas que amamos, que pensamos que nos amam e, portanto, têm a obrigação de nos entender. Ela pergunta “o que se passa?”. “Nada!”. E não adianta insistir, ele não vai dizer. Se não explicarmos o que sentimos, o que nos aborrece, como poderemos ser compreendidos?
Precisamos guiar o outro no nosso labirinto. Devemos dizer o que nos incomoda e o outro deve acolher esse gesto sem o considerar uma crítica. É preciso esquecer o mito de que amar significa aceitar o outro como ele é, sem restrições. Ninguém deve aceitar-nos inteiramente. Não podemos ter perfeição e companhia. Estar na companhia de outra pessoa é negociar a imperfeição todos os dias. E já agora, somos todos incompatíveis. Temos que aceitar que o outro vai querer educar-nos e que isso não é uma crítica. É a contribuição do outro para nos transformar numa versão melhor de nós próprios.
Ame e faça o que você quiser
Tudo isso é assim tão complicado? Pode não ser. Há uma espécie de toque mágico que suaviza todas essas pequenas agruras: amar. O problema é que saber amar não é assim tão comum. Há muito boa gente que não ama ou ama muito pouco. O consenso de que a capacidade de amar é inata (ou pelo menos começamos a aprender desde que somos bebês) é um grande equivoco. Ah! É preciso que se diga que há uma distinção clara entre amar e ser amado. Todos sabemos o que é “ser amado” (se tudo correu dentro da normalidade) e crescemos com a confiança de que isso vai se repetir por toda a nossa vida. Muitos passam a vida “ocupados” nessa busca e esquecem-se que também devem amar. E como se aprende a amar? Não sei. Mas, os poetas tem uma resposta possível: amar se aprende amando.
Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.
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