Os porquês de uma amizade: porque era ela e porque era eu
Gabrielle Estevans retorna à sua coluna Farmacinha Literária para escrever sobre o poder da amizade para ela e para outras personalidades famosas da história
Gabrielle Estevans retorna à sua coluna Farmacinha Literária para escrever sobre o poder da amizade para ela e para outras personalidades famosas da história
Escrevo esta coluna sobre amizade em frente ao frescor de Paula. Os sachês dos chás que nos separam carregam uma daquelas frases motivacionais que dizem que “amigos tornam a vida mais leve”. Pode até ser, mas não só. Amigos tornam a vida… Viva.
Não é de hoje: estudiosos, filósofos de boteco, poetas e seres pensantes de todos os tipos se debruçam sobre o tema — não mais do que sobre o amor, é verdade, mas ainda assim.
Segundo a teoria freudiana, o prazer obtido por tal laço afetivo será sempre atenuado ou menor, uma vez que a amizade é concebida sempre como amor inibido.
Já para o pediatra e psicanalista inglês Donald Winnicott, a amizade não remeteria a nenhuma inibição, mas sim constituiria um afeto por direito próprio. A teoria winnicottiana dá aos Paulos o que é dos Paulos: devolve nosso direito de sentir um prazer tão intenso na amizade quanto os prazeres erógenos. Não há hierarquia.
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Dois continentes
Amizade é abrigar esse outro como estrangeiro. Veja Paula: de mim, diferente em quase tudo. Um território inusitado, cheio de idiossincrasias. Eu, neste exato momento, uma ilha de vicissitudes.
Apesar disso, há um encontro tectônico que acontece no exato momento em que sinto seu abraço caloroso tentar juntar os pedaços espalhados de mim. É nessa terra mesma que nos encontramos: na disposição de criar a cultivar um espaço de segurança e acolhida.
E, de repente, nasce por puro contentamento e sem nenhum tipo de explicação o amor.
Só a frase do filósofo francês Montaigne a respeito da amizade com o também filósofo Étienne de La Boétie seria capaz de elucidar:
“Na amizade a que me refiro, as almas entrosam-se e se confundem numa única alma, tão unidas uma à outra que não se distinguem, não se lhes percebendo sequer a linha de demarcação. Se insistirem para que eu diga por que o amava, sinto que não o saberia expressar senão respondendo: “Parce que c’était lui, Parce que c’etait moi.”
Porque era ele, porque era eu
A amizade precisa de mais explicações? Acabamos de pisar em um ano novíssimo em folha. Janeiro de 2022 chega carregando a já conhecida sensação de que muita coisa ainda é possível.
Em seu “De amor e amizade – crônicas para jovens”, Clarice Lispector apresenta aos leitores o suco mais puro dos afetos. Originalmente publicado com o nome de “A descoberta do mundo”, o livro vai tecendo, através dos personagens, essa teia de amor que permeia toda a nossa existência. São os encontros, principalmente, essa lufada de esperança que faz com que queiramos descobrir a novidade — seja de novos outros, seja de outros mundos.
Foi assim com Jorge Amado e José Saramago. Já com idades mais avançadas, descobriram um no outro — e com um oceano de distância—, novos terrenos a serem desvendados. Formaram um vínculo forte, estendido entre as companheiras Zélia, de Jorge, e Pilar, de José. As correspondências afetuosas estão reunidas em “Com o Mar Por Meio — Uma Amizade em Cartas”. Bilhetes, recados, cartões e outros registros escritos trazem uma riquíssima troca de ideias entre dois grandes nomes da literatura luso-portuguesa, além de uma extensa contextualização da conjuntura social e política entre 1992 e 1998.
O bastante
É assim, também, comigo e com Paula. Um pacto de gratuidade. Em que escolho por ela sem fazer dela minha e sinto em nosso laço a mesma confiança, energia e vitalidade de um ano novíssimo em folha.
Porque era Paula e porque sou eu. E isso há de bastar — pelo menos para 2022.
GABRIELLE ESTEVANS é jornalista, psicanalista e faz amigos como ninguém.
*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.
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