O que é o amor líquido e por que é cada vez mais difícil escapar dele
Saiba mais sobre os "amores líquidos", expressão do polonês Bauman em uma época com Tinder, keep swiping, ghosting e outras formas de amar.
Neste texto, a colunista Margot Cardoso comenta sobre o “amor líquido”, expressão criada pelo polonês Zigmunt Bauman, e o que isso tem a ver com uma época de Tinder, keep swiping, ghosting e outras formas de amar.
O estilo de vida moderno acelerado, volátil e superficial foi classificado pelo pensador polonês Zigmunt Bauman como a “Sociedade Líquida”. A alusão é óbvia. Uma substância em estado líquido escorre por todos os lados, espalha-se ao sabor do terreno, sem direção, sem ritmo fixo, sem forma, sem padrão, sem lógica… Sem destino. E essa condição líquida, diz Bauman, é um estado que caracteriza tudo: do consumo às relações.
Hoje, os relacionamentos diminuíram em quantidade e durabilidade. “As relações são uma sucessão de reinícios e, precisamente por isso, os finais são rápidos e indolores”, diz ele. Segundo a sua leitura, na sociedade líquida, as relações amorosas deixam de ter aspecto de união e passam a ser um mero acúmulo de experiências. Mas não é angustiante estar numa relação sem compromisso e sem promessas? É. Mas, para ele, a insegurança e a incerteza são parte estrutural — e já assumida — do sujeito moderno.
Alguns podem pensar que é exagero ou rabugice de Bauman. Afinal, continua-se a acreditar no amor, está no cinema, no teatro. Sim — concorda Bauman —, mas o amor é mais falado do que vivido e por isso vivemos um tempo de secreta angústia: “Estamos todos numa solidão e numa multidão ao mesmo tempo”.
E não nos preocupamos. Já interiorizamos que é assim mesmo, que agora o mundo e as relações são efêmeras e que nada é feito para durar.
Ficar ou namorar?
Esse formato de relação não é novo. Nós todos, de alguma forma, experimentamos esse modelo de relação na adolescência. Quando ingressamos na vida adulta vamos experimentando novas possibilidades. Assimilamos o que gostamos e o que não gostamos no outro e, à certa altura, vamos interiorizando a possibilidade do rompimento. Ou, a relação é até considerada boa, mas — há tanta gente! Não é idade para assumir compromissos. Afinal estamos na fase dos testes. E assim, vamos “ficando”, tal como a troca de pares na quadrilha junina.
Ocorre que, hoje, no nosso líquido mundo, essa fase prolonga-se. E fica-se ali. E com o tempo, esse modelo se cristaliza e, mesmo quem quer, já não é mais capaz de avançar para a fase seguinte.
Quase não há disposição para evoluir do “ficar” para o compromisso do namoro. E do namoro para um casamento ou união de fato é ainda mais difícil.
Por que? As razões são diversas. Há quem acredite que a fase seguinte exige muito investimento e renúncias. Há o argumento — cada vez mais comum — de que é muito difícil encontrar alguém que valha a pena manter em nossas vidas.
E também falta disponibilidade mental para os sentimentos. A sociedade fixada no consumo e nas redes sociais está mais preocupada em mostrar uma vida boa, do que trabalhar para construir uma vida boa. Mostrar é mais fácil. Basta uma foto, alguns filtros e a missão está cumprida. A vida verdadeira, autêntica, com objetivos e sentido dá muito mais trabalho e talvez não seja apetecível à vista. “Parecer” é melhor e dá menos trabalho do que “ser”.
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Ligações superficiais
Bauman afirma que essa superficialidade é característica da sociedade de consumo e que foi extrapolada para os relacionamentos. O resultado são ligações superficiais, sem discordância, sem diálogos profundos e sem convivência real. E assim que aparece uma dificuldade — algum custo à liberdade individual, um mínimo contratempo — a relação é encerrada. Desconectamos, bloqueamos, excluímos.
E aqui o ponto chave: ele afirma que o grande atrativo da internet não é a facilidade de conectar e fazer amigos. O maior atrativo é a facilidade de desconectar.
Eis aqui uma coincidência: qual é o argumento mais rasteiro e cínico sobre a vantagem da prostituição? A facilidade para se livrar do parceiro. Uma prova de que a tecnologia não nos torna perversos, apenas atende aos nossos anseios.
E, claro, todas as etapas da relação estão em estado líquido: do primeiro encontro ao rompimento. Hoje, o último adeus não tem o cenário íntimo e as conversas sentidas do passado. Nem sequer exige a presença física. O desenlace é feito pelo WhatsApp e não precisa de textão: basta apenas uma frase e um emoji. E melhor: não é preciso ouvir as lamúrias e a cobrança do outro. Nesse modelo não há espaço para drama, as pessoas, tais como os produtos, são para consumo. Não deixa de ser revelador — e chocante — que no Tinder haja a opção keep swiping (“continue passando”), algo muito semelhante a uma compra online, quando depois da escolha de um produto, o algoritmo pergunta se você quer continuar comprando.
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Como escapar dos amores líquidos?
Você receia a tecnologia e pretende manter ela fora das suas relações? Não vai adiantar. A superficialidade já está instalada, a tecnologia só torna ela mais visível. Casais rompem relações de uma vida inteira num diálogo de 15 minutos. Um pedido de divórcio, vem logo a seguir ao “me passa o sal?”. E os namoros vão por caminho semelhante, com direito a inovações.
Nesse universo há um termo novo: ghosting. Assim, sem tradução, derivação da palavra ghost (fantasma), caracteriza as relações que terminam sem explicações. Um dos pares simplesmente some. Não atende o telefone, não responde mensagens. O praticante do ghosting simplesmente desaparece sem deixar vestígios, como um fantasma.
Entretanto, acredito que ainda não atingimos o pico: o formato das relações ainda vai piorar muito. Bauman não está mais aqui para acompanhar — infelizmente ele morreu em 2017. Mas já vislumbro rompimentos que envolvem mais do que duas pessoas no Zoom. Vejo casais completarem um argumento com partilha de fotos e printscreen de mensagens trocadas. E mais: com direito a tirar o som de quem começa um argumento cansativo.
MARGOT CARDOSO (@margotcardoso) é jornalista, pós-graduada em Ética e Mestre em Filosofia. Nesta coluna, quinzenalmente, escreve sobre a arte de viver, sempre à luz dos grandes pensadores.
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