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Você quer desistir? Então, desista.
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A ditadura da perseverança alimenta sonhos impossíveis e habita mundos que já deixaram de existir 

Você tem um projeto que não sai da fase inicial. Desde sempre percorre o labirinto de um sonho que nunca decola. Há anos tenta equilibrar um relacionamento que insiste em permanecer na corda bamba. Você conhece esses enredos e pode estar diante de um deles neste exato momento. E, sim,  muitas vezes você já pensou em desistir, mas receia contemplar o espelho e ver um fracassado. Pior, você morre de medo do julgamento dos outros e das suas detestáveis perguntas-censura: “Não acredito que você vai desistir? Mais uma relação falhada?” Não é difícil entender a força dessas razões. Vivemos tempos do norte-americano just do it  que diz que tudo é possível. Basta fazer! Sempre que você pensa em soltar a mão, um cartaz surge na sua frente: “Nunca desista!”.

A ideia de que você deve perseguir os seus sonhos tornou-se quase um mantra da modernidade. Para ser bem-sucedido, você precisa correr atrás dos seus sonhos. Deve traçar um caminho e manter-se nele, custe o que custar. Qual é o único pré-requisito? Perseverar. “Desistir não é uma opção” diz o manual da autoajuda.  “O show tem que continuar”, diz a cultura. E se não der certo?  “Tudo vai dar certo no fim.  Se não deu ainda é porque o fim ainda não chegou”. E se eu realmente fracassar? “É porque não se empenhou o suficiente”.

Tudo muda

Os gurus da autoajuda pregam um compromisso total: 24 horas de foco. Sugerem uma receita infalível. Primeiro descubra o objetivo e visualize-o.  Cole uma foto — num lugar bem visível — da casa dos seus sonhos. O cérebro precisa de imagens. Transforme esse sonho em um desejo ardente; faça todos os sacrifícios necessários; cumpra todas as etapas; mantenha-se motivado; monitore o seu progresso.  O que há de errado com esse método? Ora, se entramos num circuito de alta rotação, sempre de olho em saltar o próximo obstáculo, não conseguimos espaço para prestar atenção a dois elementos importantes: as nossas próprias emoções e as circunstâncias que nos cercam.

É óbvio que precisamos estar atentos aos nossos sonhos e objetivos, mas não podemos estar alienados de nós mesmos e, menos ainda, do que acontece à nossa volta. Afinal, nada existe fora da realidade. O que pode correr mal com a cegueira diante dessas duas dimensões? Se durante o percurso você perder o contato com o seu eu, você perderá de vista as mudanças que acontecem em você. Mudamos o tempo inteiro. O que desejamos hoje, poderemos não desejar amanhã. O que faz sentido em junho, pode deixar de fazer sentido em julho. O mundo — o lugar onde tudo acontece — também pode mudar. Às vezes, depois de anos de busca de uma peça que faltava, descobrimos que ela já não serve mais.

O outro

E quando o sonho ou o projeto envolve uma outra pessoa? Além de manter a atenção em nós mesmos e no mundo,  temos de estar atentos ao outro. Aqui, a equação é ainda mais complicada  porque esse terceiro elemento pode anular os dois primeiros.  Quando isso acontece,  o cenário é devastador porque é de perda total . O outro deixa de existir e — junto com ele — desaparece o que você era e o mundo que você “pensava” que existia.  Quem já passou por isso descreve a sensação: um enorme e doloroso vazio. E é exatamente assim. Tudo desaparece. Primeiro a mobília, depois a casa inteira. Tudo precisa ser reconstruído do zero:  um novo eu, um novo mundo…

Não vi

Não estou aqui fazendo um discurso contra a busca de sonhos.  O que está aqui em causa é a cegueira obstinada. Vá atrás dos seus objetivos, mas preste atenção no caminho. Esteja atento às mudanças no mundo, em você e naqueles que caminham com você. E se você notar mudanças, considerar que o caminho já não faz sentido, não existe mal nenhum em desistir. Não é preciso esperar o fim e o vazio. Não é preciso esperar que os sonhos, os projetos  ou as relações desistam de você primeiro.

Às vezes, no meio do percurso — e até no início — enxergamos os sinais de que devemos voltar para trás . Mas  por medo do rótulo de pessoa perdida, sem garra e, consequentemente, desencaixada do mundo dos conquistadores, continuamos em frente. No caso das relações, agimos da mesma maneira. Fechamos os olhos a todos os indícios que apontam que a missão deve ser abortada. Aqui, uma área em que o “just do it” tem muito poder:  achamos que a força do nosso querer pode tudo. E não pode.

Qual é o custo?

O vislumbre do fracasso iminente ou a intuição de que algo não vai bem é a única razão para desistir? Não. Se o processo exigir muito sacrifício, dor ou inviabilizar a felicidade ou a satisfação de viver, esses também são motivos legítimos. Alguns se envergonham em assumir isso como uma razão para desistir, não deveriam. Receiam receber o carimbo de falta de ambição e o valorizado “sentido de sacrifício”.  Um absurdo enorme que se desfaz como bola de sabão quando chamamos para a cena a consagrada máxima “a jornada é mais importante do que o destino”. O aprendizado e o prazer do caminho são muito mais ricos do que perseguir sonhos a todo custo.

Há alguns anos, eu experimentei investir em ações. Naquela altura eu tinha uma vida massacrante num jornal diário. Trabalhava quase 12 horas por dia e tinha apenas o dia do Senhor como o único dia de descanso. Depois de uma semana insana, eis que finalmente chegava o domingo. Eu acordava, pegava o jornal e a primeira coisa que via era a cotação da bolsa. Verificava os números, fazia as contas e lia todo o caderno de economia. Depois de quase um mês nessa rotina, fez-se luz na minha cabeça. Antes da minha persona investidora, eu abria o jornal no caderno de cultura, lia sobre cinema, lançamento de livros, teatro, concertos. Depois passava para os restaurantes, escolhia onde almoçar…  Não demorou muito e eu comecei a me questionar: Onde estou colocando o meu coração? Para onde foi o meu domingo de prazer e descanso; o meu gosto de viver? Bem… na segunda, vendi as ações.

Esforça-te!

Ah! Mas e o sacrifício agora em nome de benesses maiores no futuro? Essa é uma lição que pode funcionar em algumas áreas, como os exercícios para sermos melhores, como o culto às virtudes em detrimento aos vícios. Mas, essa crença generalizada é um desastre, uma das piores lições que aprendemos e que precisa ser desmascarada.  Se você gasta toda a sua energia no esforço de cumprir metas e alcançar objetivos — um carreira de sucesso, uma relação, um empreendimento — e não integra às suas emoções, o mundo e as pessoas que te cercam, a sua satisfação com a vida começa a se deteriorar. Se você adia o presente em prol de “ser feliz no final” a felicidade não virá, mesmo quando você atingir os objetivos pretendidos. Todas as nossas dimensões precisam caminhar juntas.

Lucidez

“Nenhuma árvore pode crescer até o céu”, diz Jung. “A menos que suas raízes cheguem ao inferno”, completa ele. A visão — e reflexão —  sobre a totalidade da vida precisa ser considerada. Esse discernimento faz parte dos ensinamentos da filosofia estoica: a distância entre o que queremos e o que a vida disponibiliza precisa ser a menor possível. E essa lucidez, só ela, é capaz de evitar que os nossos sonhos caiam no vazio ou se transformem em pesadelos. Mire o seu sonho, mas tenha um olho no seu interior e outro no caminho. Hoje, na insegura modernidade valoriza-se muito a coragem. E não é um engano, a coragem é uma grande virtude. Porém, às vezes, desistir exige mais coragem do que continuar.


Margot Cardoso (@margotcardosoé jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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