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Você é racional?
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Neste artigo:

A oposição entre o que se pensa e o que se sente domina todas as esferas. É possível fazer essa escolha?

O mundo exige o ser racional e nós, bichos emocionais, procuramos dar o nosso melhor. Corremos de uma ponta a outra. Buscamos atender a nossa parte que sente — que reclama, que se alegra, que entristece — e tentamos atender ao mundo lá fora que exige a nossa capacidade de pensar. Porém, esse é um esforço que fazemos por nossa conta e risco. A sociedade menospreza esse esforço. Para ela, é um trabalho desnecessário e não bem-vindo, o que ela quer é que você elimine o seu emocional. Só o pensamento, e com qualidade — racional e preciso —  interessa.

Desde muito cedo somos ensinados a valorizar o racional em detrimento ao emocional. Recebemos a instrução de que o emocional atrapalha. Mas como não é possível se livrar dele, somos instruídos a escondê-lo. A educação, a escola, a sociedade e a cultura trabalham para neutralizá-lo. Fiquei imensamente triste quando percebi que o meu filho tinha aprendido esse  funcionamento nocivo do mundo. Ele estava na mesma escola desde o três anos de idade e, aos nove, pediu para sair: queria uma nova escola. Eu quis saber as suas razões, mas depois de muita conversa percebi que só havia uma. Seus colegas conheciam-no desde a pré-primária e já tinham visto ele chorar várias vezes. Sua constatação: Os colegas se lembravam disso, considerava-o um fraco e, por isso, ele não era “tão” respeitado como os outros.

Há um consenso de que demonstrar sentimentos é um sinal de fraqueza. Na sociedade, não há paciência para o singular, o que conta é o coletivo — o racional disciplinador. Quando encontramos alguém, a pergunta “tudo bem?” é quase automática, mas sabemos que o outro quer ouvir apenas o “tudo bem”. O que é natural, as conversas sobre o que sentimos não são práticas. Aqueles que resistem ao modelo e tentam escapar ao texto, é rejeitado. O outro esquiva-se com o desdém de que “eu não sou psicólogo” ou o “não suporto dramas”. É natural. Principalmente por aqueles que estão tentando fugir do que eles próprios sentem. Por que haveriam de ter o espelho do outro para mostrar exatamente o que não querem ver?

Caminho errado

Ocorre que a tentativa de anular o emocional é uma agressão contra nós mesmos, contra a nossa natureza. Uma vida bem-sucedida — se é que podemos usar esse adjetivo — está justamente nessa habilidade de acomodar a sua natureza emocional à moldura racional do mundo. Sendo assim, porque razão o mundo valoriza apenas o racional? Ora, se somos indivíduos emocionais, a tentativa de eliminar as emoções consiste também na tentativa de eliminar o sujeito que sente as emoções. Como é possível? Mas há quem tente. Há um contingente enorme de pessoas que vivem a se esquivar de si mesmas, fogem de lugares com muita luz, falam sem olhar nos olhos, não assumem o que sentem. E com o exercício dessa forma de estar, perdem o acesso a si mesmas e, a longo prazo, perdem a capacidade de saberem o que sentem.

Sem rosto

E aqui temos o homem inautêntico, apontado por Heidegger. O tipo mais comum hoje no mundo moderno. Não é nem um ser racional, nem é emocional. Não habita nenhum dos mundos. Há quem viva nesse limbo uma vida inteira. Ao invés de olhar dentro de si, atender os seus interesses, negociar com o racional e viver uma vida autêntica, com sentido e com intensidade, vai “interpretando” os papeis exigidos. Incapaz de lidar com suas emoções, adquire várias máscaras e vai usando-as de acordo com que a sociedade manda. Carl Jung dá o nome a essas máscaras sociais de personas: são personagens que aprendemos a interpretar.

Não são vidas, são construções sociais. Acorda-se e põe-se a máscara do empregado exemplar. No fim do dia, assume a máscara do marido, do namorado exemplar. E entre uma máscara e outra, se angustia, se estressa e refugia-se nos vícios. A casa que poderia ser um refúgio, um espaço de reflexão e encontro do “eu”  vira um templo de alienação via tecnologia: televisão, you tube, redes sociais, texting… Depois, cansado, adormece e, no outro dia, começa tudo de novo. Esse é um modelo. Há outros mais simples. Há um estudo que descreve a rotina da classe operária inglesa (semelhante a outras nacionalidades): trabalhar, embebedar-se, dormir, trabalhar, embebedar-se… Há algumas variações, porém a mesma vida de máscaras e fugas de si mesmo.

Sinta e viva

Qual é a saída possível? Identificar, acolher, vivenciar tudo o que se sente. Note que a ideia não é que você se transforme no rei ou na rainha do drama e que viva com os sentidos à flor da pele. Aqui é o ponto de partida. Só quem tem um emocional bem desenvolvido é capaz de acomodar as exigências racionais. A racionalidade só serve, só é possível, a partir de um sólido conhecimento de si mesmo. Sócrates avisava que se o que você procurar, não encontrar primeiro dentro de você mesmo, você não encontrará em lugar nenhum.

Conhecer as nossas emoções é a base para o construção do ser híbrido, equilibrado entre o emocional e o racional. A lucidez extraordinária de Nietzsche dá conta que é da fonte emocional que nasce o pensamento racional. Não há oposição entre um e outro. Pensamos a partir do que sentimos. Apesar de não termos consciência disso, a forma como sentimos influencia a nossa maneira de pensar. Quanto mais vivenciamos o nosso emocional, mais qualidade temos no racional. Quem sabe o que sente, pensa racionalmente melhor. Quanto maior for o acesso às suas emoções, melhor será o seu pensamento racional.

“Ah! Eu sou um analfabeto emocional, mas penso racionalmente e tomo boas decisões”. Ok. Mas, possivelmente, essas decisões não são suas, são dos outros. Aqui outra faceta da vida inautêntica e que tem como resultado uma vida sem propósito, sem sentido. E como identificamos essa fraude em nós mesmos? Você já esteve num lugar ou numa situação e veio a pergunta “que diabos estou fazendo aqui?”. Esse é um sinal.

Olhe para os dois sentidos da estrada

Você já deve ter passado pela experiência de deliberar sobre uma decisão importante, como abandonar um projeto ou uma relação, por exemplo. Você pensou sobre todas as implicações práticas: viu a inviabilidade a curto prazo, a impossibilidade a longo prazo e resolveu agir. O resultado: os meses seguintes foram os piores da sua vida. Você ficou sem chão, a vida perdeu o sentido. O que houve? Você tomou a decisão apenas olhando o racional, o emocional foi esquecido, não foi preparado, não foi avisado. O contrário também acontece. Você aceitou um projeto completamente dominado pelo emocional. Nos dias que se seguiram você bateu de frente com todas as consequências racionais que foram negligenciadas. Emocional e racional precisam estar em equilíbrio, caso contrário, mais cedo ou mais tarde, você terá que se sentar à mesa para o banquete das consequências.

O preço a pagar

E como fazemos essa harmonização na prática? O racional é fácil, todos ajudam. O emocional é mais complicado. É um caminho solitário, de você com você mesmo. Exige que você encare o seu lado menos bom, as suas limitações. Há que lidar com os golpes na autoestima. Há que dialogar com inseguranças e medos. Há que saber lidar com os seus demônios. E não basta olhar para eles, eles precisam ser aceitos e integrados como parte da sua natureza. Como se faz? Falando sobre eles. Com você mesmo e, principalmente, com os outros. Não dê muita importância ao que você pensa, coloque em destaque o que você sente e porque você sente. Inicie a prática desse exercício hoje. Espere… Comece agora: o que você sente neste exato momento?


Margot Cardoso (@margotcardosoé jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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