Você consegue ouvir bem?
Ana Holanda compartilha um pouco de sua vivência atual com o pai e fala sobre seu processo para ressignificar a sua comunicação com ele.
Além de sua coluna na revista, Ana Holanda está de volta ao portal Vida Simples! Teremos por aqui, mensalmente, textos com reflexões importantes sobre os afetos da vida. A seguir, a Ana compartilha um pouco de sua vivência atual com o pai e fala sobre seu processo para ressignificar a sua comunicação com ele.
Meu pai, Paulo, está com 85 anos. Anda com dificuldade e não ouve. Há pouco mais de dois anos usa um aparelho de surdez. Ou deveria usar. Pois é, dificilmente ele o coloca. Por quê? Não sei. Já o questionei, mas ele sempre responde tentando criar labirintos entre as palavras, me enganar e fazer com que nunca entenda o motivo pelo qual se nega a utilizar o acessório.
Quase sem comunicação
Não usar o pequeno dispositivo tem lá suas consequências. Dia após dia ele se torna cada vez mais ausente das conversas. Recentemente, recebi uma mensagem do hospital. Era importante. Ele precisava fazer uma infiltração na região do quadril e, por conta da idade avançada, isso só poderia acontecer por meio de uma internação – e não na clínica. Foram semanas de espera até que o plano de saúde autorizasse o procedimento. Mas era necessário que fosse no mesmo dia ao hospital fazer o teste de covid para, então, realizar a infiltração. Liguei para a casa dele da rua.
– Alô, pai, recebi uma mensagem do hospital.
– O quê?
– Pai, uma mensagem do hospital sobre o seu procedimento. Finalmente autorizaram.
– Oi? Mensagem?
– Pai, você está com o aparelho?
– O quê, filha?
– Pai, chama a mamãe.
Respirei fundo, com a garganta já doendo de tanto berrar e finalmente conversei com minha mãe. Cenas assim, em que grito e ele segue não me escutando, têm sido normais na nossa rotina. E rendem até alguns memes no grupo de WhatsApp da família, do qual ele também faz parte, mas nunca interage.
Quase sem interação
Não ouvir também faz com que se afaste das pessoas, nos almoços de domingo ou nas festas de aniversário. Ele senta em algum canto longe das risadas, do alvoroço, das trocas. Pouco participa. Isolamento. E este é um afastamento que me dói. Sempre gostei de conversar com meu pai. Sobre a vida, o trabalho, os sonhos, os medos, as dúvidas, as alegrias, as plantas que estão indo bem e as que não estão. Sobre tanta coisa. Mas sempre conversamos. Muito. A dificuldade em me fazer ouvir nos distancia. Das palavras.
Fiquei refletindo sobre isso antes de escrever este texto. Pensei nas tantas vezes que não damos espaço para ouvir o outro. Neste caso, não pela ausência de um aparelhinho, mas porque não fazemos com que a pessoa se sinta à vontade em se aproximar e falar. Medo. Criamos relações de poder e de medo. Nos colocamos em um lugar acima do outro sem nem nos dar conta disso. O resultado é o isolamento – também sem que a gente se dê conta disso.
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Novas formas de conversar
Não conversar com quem está ao nosso redor, aquelas com quem trabalhamos e nos relacionamos todos os dias, pode ser bem danoso para aquilo que fazemos.
E conversar não é o mesmo que falar. É troca, é abertura, é espaço para até mesmo saber escutar o que não nos agrada. Relações maduras demandam isso.
Com meu pai estou aprendendo, agora, a me relacionar pelos gestos, pelo olhar acolhedor e pela compreensão das escolhas dele – para que nunca arranhem o amor que cultivamos entre nós. Nas relações profissionais, a única saída é colocar o aparelho auditivo e aumentar o volume. Ou se dispor a ouvir o que as pessoas ao redor têm a dizer. Seja lá o que o for, concordando ou não, mas se abrindo para o delicado exercício da escuta.
Leia todos os textos da coluna de Ana Holanda em Vida Simples.
ANA HOLANDA (@anaholandaoficial) é jornalista, escritora, professora e apaixonada pelas palavras. E essencialmente mãe do casal de gêmeos Clara e Lucas.
*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.
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