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O sono comanda a vida
Andrea Piacquadio | Pexels Mulher tentando dormir
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Além de comprometer a saúde do corpo, a falta de sono está associada a muitas disfunções psíquicas, como déficit de atenção, depressão e psicose.

Todos os dias vivenciamos uma experiência fascinante. O nosso corpo entra em um estado de quase paralisia, os músculos ficam completamente relaxados e o cérebro mergulha a consciência na escuridão. O único indício de vitalidade são os nossos olhos, que giram velozmente sob as pálpebras cerradas. A sensação é de que somos seres etéreos, podemos voar e, às vezes, caímos. Estamos nos limites do material e imaterial, num estado de semicoma, quase na fronteira da morte…. estamos dormindo.

O ato de dormir sempre foi escrutinado pelo homem. Filósofos e poetas sondaram os seus mistérios. Por volta de 350 a.C., Aristóteles escreveu “Do sono e da insónia”, um ensaio onde o filósofo questionava o que fazemos enquanto estamos dormindo e o porquê.  E como as explicações não vinham, o sono permaneceu uma incógnita, quase temido. Já foi comparado com a morte e, por vezes, confundido com ela. Na mitologia grega, os deuses Hypnos (sono) e Thanatos (morte) são irmãos gémeos; a bíblia afirma que sono e morte são similares.

Sono e desperdício

Mais tarde, em searas capitalistas, o sono foi pensado como um adversário da produtividade. O sol  — regulador da vigília e do sono — perdeu o posto para o horário laboral da fábrica. E, em nome do lucro crescente, alguns achavam que dormir era um hábito inconveniente e que, no futuro, o homem iria dispensá-lo por completo. Havia uma certa má vontade com o sono. A viagem complexa e misteriosa que trilhamos todas as noites era vista como algo a adiar.

A crença era de que passamos um terço da vida na cama e que isso é um desperdício. Eu própria aderi a recomendação de ingerir guaraná em pó para segurar as pálpebras durante as longas horas de estudo e fui consumidora dessa substância durante o ano inteiro que durou o curso pré-vestibular e boa parte da universidade.

Dormir para viver

Só recentemente, com a neurociência em campo, surgiram as respostas às perguntas de Aristóteles. Sofisticados aparelhos dizem exatamente o que acontece quando dormimos. Porém, mostra algo menos esotérico ­— como acreditava Aristóteles — o sono é uma atividade vital para o corpo e para a alma. O padrão sono-vigília é uma característica essencial da biologia humana: uma adaptação para viver num planeta em rotação contínua.

Em 2017, o Prémio Nobel da Medicina foi atribuído a três cientistas que identificaram o relógio molecular existente no interior das nossas células, cujo objetivo é manter-nos sincronizados com o Sol. E segundo outras  investigações,  a não coincidência entre sol e vigília, escuridão e sono, aumenta as probabilidade de doenças como diabetes, insuficiência cardíaca, AVC e demência.

Sono e distúrbios

A vertente científica que estuda os distúrbios do sono ainda é recente. Mas já se sabe que o sono não tem apenas a função de descansar o corpo do estado de vigília. Não existe uma função única: há várias funções. Ao contrário do que se pensava, o cérebro não fica inativo durante o sono, ele continua ativo, mas funcionando de modo diferente.

Sabe-se que ao mergulhar no sono, o cérebro entra em modo “manutenção”, arrumando “a casa”, organizando memórias e selecionando o que deve ser guardado e o que deve ser eliminado. O cérebro desperto está preparado para receber estímulos externos e o cérebro adormecido para consolidar a informação recolhida.

mulher na cama consultando o celular

Luzes artificiais inibem a produção de melatonina, hormônio indutor do sono. Crédito: Gaelle Marcel | Unsplash

Insônia e seus distúrbios

É no sono profundo que as nossas células produzem a maior parte do hormônio do crescimento, necessário à manutenção dos ossos e dos músculos, ao longo da vida. Por isso, quem não dorme bem, tem mais dificuldade em se recuperar de lesões. Há outros estudos que mostram que o sono é essencial para garantir a saúde do sistema imunológico, da temperatura corporal e da tensão arterial.

Pesquisam afirma que o insone pode engordar. Quando não se dorme o suficiente, o estômago e outros órgãos produzem grelina  — o hormônio da fome. Esse em excesso, faz com que se coma mais do que se necessita. A falta de sono também está associada a muitas disfunções psíquicas, como déficit de atenção, depressão e psicose. Também são registrados prejuízos para o comportamento. Os insones são mais irritáveis, temperamentais e irracionais. Até certo ponto, todas as funções cognitivas parecem ser afetadas pela falta de sono.

Quantas horas de sono?

Mas quanto é dormir pouco e dormir muito? Como está diretamente ligado às necessidades do corpo, o tempo necessário de sono varia com a idade e organismo de cada um. Crianças de 3 a 5 anos, por exemplo, precisam dormir de 10 a 13 horas. O mais recente estudo afirma que um adulto deve dormir pelo menos 7 horas.

Estranhamente, essas descobertas chegam justamente quando estamos perdendo a capacidade de dormir. A vida acontece em velocidade rápida e é cada vez mais difícil “desligar”. Hoje, estamos dormindo duas horas a menos do que há um século.

E os culpados são os suspeitos do costume: excesso de iluminação artificial. Estamos em permanente exposição a focos de luz e cercados de objetos que emitem luz como televisão, computadores, e-readers e telefones; estresse e estilo de vida acelerado. O problema é tão grave que, respaldado pelo desenvolvimento da ciência, surgiu uma nova especialidade médica: distúrbios do sono.

Relógio interno

E agora, mais que do estudar o que acontece quando dormimos, as pesquisas dedicam-se a entender as razões que fazem com que o homem durma cada vez menos e mal. Já se descobriu, por exemplo, que a luz artificial, quanto mais azul e intensa, pior. Ela inibe a produção de melatonina, um hormônio produzido naturalmente pelo corpo humano que tem entre outras funções a indução ao sono. É a melatonina que regula o “relógio interno” que nos faz dormir e acordar em ciclos de 24 horas.

De manhã, com a claridade, o nível de melatonina cai, e você acorda. O problema é que hábitos modernos, e em especial a tecnologia, está subvertendo essa ordem. Depois que anoitece, continuamos a ver televisão e usar celular, computador, tablets, etc. A questão é que o cérebro não sabe qual a diferença entre a luz artificial e a do Sol. Em plena noite, ele pensa que ainda é dia, não produz melatonina e o sono não vem.

Pílula do sono

E, em paralelo a busca das razões da insônia, tentam descobrir novas drogas para combater a insónia — até agora todos os medicamentos indutores do sono causam dependência. Enquanto a pílula do sono não vem, e é preciso dormir hoje, vigie. Para combater os inimigos de uma boa noite nos braços de Morfeu, comece pela raiz do problema: tente seguir o sol.

Esse é o exemplo mais literal possível do “viver conforme a natureza”  — um dos preceitos da filosofia estoica. Mas, não se preocupe, a tecnologia —mestre em resolver os problemas que ela mesmo cria — já entrou em campo. Há aplicativos que tentam imitar a iluminação natural. Ao fim do dia, a tela do celular passa um tom mais vermelho, semelhante ao pôr do sol. A televisão também faz o mesmo, basta selecionar o modo “Cinema”.

Dormir é preciso

Lance mão de tudo o que estiver disponível. O sono é a antecâmara da vida. Imagine a analogia do nosso corpo como um grande aquário. Sem biólogos experientes que saibam que tipo de alimento os peixes necessitam, a temperatura e PH corretos da água, o aquário não é viável. O sono funciona como os bastidores do nosso organismo. Sabe-se que ele é mais importante do que o alimento. Numa dupla privação de comida e de sono, o animal morre primeiro de falta de sono. Portanto, antes de se preocupar com as tarefas do seu dia e com projetos de médio e longo prazo, zele pela qualidade das suas noites. Porque, contrariando o poeta, é o sono que comanda a vida!


MARGOT CARDOSO, jornalista e Mestre em Filosofia, procura sempre acompanhar o movimento do sol, mas mesmo assim, tem muitas noites insones.  

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples

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